quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Distraído


Por Helena Frenzel
         Há tempos eu vinha cansado, ela sabia. Era final de sábado e voltávamos das compras do mês. Ajudando a guardar os artigos, lembrei daquilo que Zé Oliveira, bom amigo, me propôs: “Se você quiser, aproe aqui que eu não cobro, eu tenho sempre lugar pra ficar por lá”.
         Ele morava na cidade em que eu trabalhava e eu, na capital em que ele vinha trabalhar. Eu ía e vinha todos os dias; ele, só quando em vez. De fato, minha casa era a estrada e a essa conclusão só cheguei muito depois.
         Cem quilômetros por dia, ida e volta, eu já nem sabia como sabia a comida de casa, acho que ela também não. Eu chegava à noite, acabado, e ela já estava sob os lençóis; eu tomava banho e ia deitar.
         De manhã cedo, às cinco, tudo de novo: acorda e levanta, se lava, faz o café, a barba, se lava, come e lava a louça, se lava, se veste e pega a pasta, espera em frente ao portão. E ela dormia um pouco mais porque entrava só às onze.
         Um dia sou eu, no outro é o Dico, outro amigo muito bom. Ontem foi ele quem dirigiu. Moramos no mesmo condomínio, trabalhamos na mesma firma e esse emprego foi ele quem me arrumou. Antes eu só havia feito bicos, agora a coisa ia bem melhor.
         “Com esses frascos aí, muito cuidado! Lá no banheiro com o material fotográfico, cada qual em seu lugar, ouviu?”. Voltei do transe a tempo de ouvir o final da instrução; sempre fui distraído e arrumar compras é muito chato mas ajudo para não ouví-la reclamar.
         Primeiro compramos a casa e os móveis, o carro veio depois. Estamos pagando tudo em suadas prestações. Ela também trabalha e a repartição pôs-lhe um carro à roda, ela assessora políticos da capital — vaga que Oliveira arrumou, para nossa sorte, pois que assessores ganham muito bem e ele conhece muita gente ‘forte’. Oliveira é político de nascimento e leva muito bem a vida ensinado aos outros o seu dom.
         Uma vez no banheiro, larguei os frascos, tomei uma ducha. Estávamos já na cama quando algo me surpreendeu:  “Como foi seu dia?”, há tempos ela não me perguntava nada. “Bom, e o seu?”, respondi com sincero interesse. “Normal” — e essa resposta me deixou sem saber como continuar. Justo neste momento entrou o Manuel Pelota e eu me distraí falando com ele, combinando o futebol de domingo. “Está bom então, teclamos mais tarde, beijos”, ela disse. “Beijos”, respondi.
         Bem mais tarde vi quando ela saiu da rede, pôs o celular na cabeceira sem desligá-lo, virou para o lado e dormiu. Eu fiquei mais um pouco, teclando com o Dico, que já estava para sair do espaço quando me viu e me chamou. Depois de ter checado meu e-mail, pus o meu também ao lado, ativo, desliguei a luz e apaguei.
         Na segunda-feira tive um dia de trabalho cheio, cheguei em casa louco para descansar. Naquela noite, ao tomar banho, esfreguei o corpo com xampu e lavei o cabelo com sabonete. Lembrei da proposta de Oliveira: Sim, amanhã eu levaria uma mala porque cem quilômetros por dia, ida e volta, não era mole não!
         De banho tomado, pus o pijama e fiz menção de ir deitar-me. E ela já, sob os lençóis. Então lembrei-me de algo. Voltei ao banheiro e ao automático: escovar os dentes, bochechar.
         Por fim tomei do frasco com veneno em vez do frasco com loção bucal. Se troquei ou se trocaram, disso eu nunca vou saber, a polícia tinha por dado que fora caso de distração.
         E no meu funeral, vi tudo muito claro: “Cada qual em seu lugar”— Oliveira e Dico, ela no meio, eu no caixão.
         Distraído, eu jamais havia notado que as vestes bem moldavam-lhe as formas e como o preto lhe caía bem.

HELENA FRENZEL é maranhense, autora-editora de vários Ebooks gratuitos, entre eles, as coletâneas de contos “Perfis Interessantes”“Trinta Contos de Euros e Três de Natal” e “Outros Quinze Contos”. Mantém os sites 15 Contos+Bluemaedel”, “Sem Vergonha de Contar” e uma escrivaninha no site Recanto das Letras.




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3 comentários:

  1. A trama perfeita, narrada de forma envolvente que nos prende do começo ao fim. Tinha lido, agora releio bem devagar que é para me apropriar de cada ideia, "Cada qual no seu lugar", fazendo o arranjo certo, fechando de forma surpreendente. Parabéns, Helena! Abraço da Marina Alves.

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    1. Puxa, Marina, muito obrigada! Para mim é uma honra receber uma leitura assim: nada 'distraída'! :-). Mas, vindo de você, que eu sei que ama literatura, o que mais se poderia esperar, não é mesmo? Muito obrigada por contribuir com este projeto, primeiro com um ótimo conto, e agora com a leitura atenta e comentada de cada texto. Ainda que os colegas não o façam, em nome de todos lhe agradeço. Um abraço fraterno e até breve!

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  2. Boa noite, Helena.Gostei demais de seu conto! Sou meio distraída. Vou prestar mais atenção nas coisas. rsrsr. Abraços.

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