quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Brinde


Por José Neres
         A bem da verdade, é preciso dizer: meu pai nunca deixou que nos faltasse comida. Sempre tivemos até mais que o necessário para uma vida confortável. O que nosso pai não nos dava em palavras, afagos e carinhos, ele nos dava em comida e sorrisos. Não consigo me lembrar da voz dele. Não consigo esquecer seu sorriso meigo de dentes perfeitos. Falava pouco. Sorria o suficiente para encantar com seu silêncio.
         “Pai, tô com fome!”. Era a frase que ele mais ouvia dos filhos. Três ao todo: eu, minha irmã e meu irmão mais velho. Nosso pai nada falava. Sorria. Ia à geladeira e preparava algo bem gostoso para todos. Comíamos e bebíamos felizes.
         Mas isso foi antes da grande crise.
         A grande crise chegou e abalou a todos. Papai se esforçava ao máximo para manter a casa. Mamãe, sempre alheia a tudo, começou a perceber que a despensa ia ficando vazia. Ela falava menos que papai, com o defeito de nunca sorrir. Mas da voz dela eu me lembro. Era voz de sofrimento.
         A frase continuava a mesma: “Pai, tô com fome”. A comida vinha em quantidade menor, mas sempre vinha. A diferença era que papai já não nos acompanhava durante as refeições. Depois mamãe também parou de sentar-se à mesa conosco. A crise aumentava. Mas era diminuída pelo sorriso de meu pai.
         A geladeira estava vazia, mas a fome continuava. Papai, com o olhar, chamou mamãe para a cozinha. Ouvimos o choro dela. Sentido. Distante. Mas minutos depois esquecemos tudo com a visão de um belo bife, bem passado. Papai parou de aparecer para nós. Vez ou outra, apenas botava a cabeça para fora pela porta da cozinha e dava um sorriso. Mas agora era um sorriso triste, dolorido.
         A carne servida não deixava que sentíssemos a ausência de nosso pai. Um dia nossa mãe nos serviu apenas uma sopa com pouca carne e muito osso. Reclamamos. Ameaçamos chamar papai para resolver o problema. Queríamos carne. Estávamos acostumados era com carne, não com osso. Mamãe suspirou fundo e foi para a cozinha.
         “Filhos... Venham cá!” A frase imperativa, mas quase inaudível, vinha de uma voz já quase esquecida. Nosso pai, depois de muito tempo, falava de novo. Entramos alegres na cozinha e paramos de súbito. Sentado em uma cadeira perto do fogão estava papai. Ou melhor, o que restava dele. Apenas a cabeça se mexia, lentamente. O pulmão e o coração eram visíveis através do esqueleto que teve quase toda a sua carne cortada, congelada, frita, assada, cozida...
         Ele não precisou dizer mais nada. Compreendemos tudo. De seus lábios tristes brotou um sorriso. O último sorriso que ele dividiu conosco. Mamãe pegou uma taça de cristal. A última que restava e levou-a até a cabeça de papai. As lágrimas dos dois se misturaram e gotejaram na taça. Ele olhou para nós, triste, mas com a satisfação estampada no rosto. Mamãe, fez um gesto de brinde em direção ao esqueleto de papai, para si própria e depois em nossa direção. Abriu a geladeira e ali guardou para sempre as lágrimas dos dois.
         Voltamos para a sala e nunca mais reclamamos da sopa de ossos que nos mantinha vivos.

JOSÉ NERES é professor, tradutor e escritor. É graduado em Letras (UFMA), especialista em Literatura Brasileira (PUC-MG) e mestre em Educação (UCB). Autor de diversos livros, entre eles, "Negra Rosa & Outros Poemas", "50 Pequenas Traições""Restos de Vidas Perdidas" "Estratégias para Matar um Leitor em Formação". Atualmente é professor da Faculdade Atenas Maranhense (FAMA) e da Faculdade Pitágoras. Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.


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4 comentários:

  1. José Neres, já li seu conto umas três vezes, para apreender cada palavra, cada ideia, que pode-se perceber, foi construída com todo o zelo e carinho necessários para que o resultado fosse esse: maravilhoso! Este conto insólito é uma mistura de emoção, dor e profundo amor. Lembrei-me de um programa que vi certa vez mostrando uma ave (um pelicano) que bicava o próprio peito e dele deixava jorrar o sangue para alimentar os filhotes famintos. Nunca mais esqueci aquela cena. Volto a reencontrá-la, embora em nova roupagem,com a mesma força neste seu conto, tão bem urdido e tão bem escrito. Impactante, surpreendente.

    Parabéns!

    Um abraço da Marina Alves.

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  2. Bravo! Um conto fantástico! Incisivo e amoroso. Era tudo o que eu precisava neste fim de tarde: uma profunda emoção, uma emoção nascida de palavras!!!! E que palavras. Obrigada por compartilhar.
    Bj

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  3. Lindo conto, foi o que imaginei, mas pensei em seguida. Não pode ser... E era o que pensei, mas tão poeticamente escrito que quase engasguei-me com a emoção.
    Abraços professor.

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  4. Obrigado pelos comentários... Fico feliz que tenham gostado de meu conto.

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