quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Catador de Sonhos


Por Marina Alves Gontijo
         Donga: é assim que sempre o chamaram. Nunca teve papel, documento, essas coisas que todo mundo tem. Analfabeto, criou-se na rua. Sobrevivente das pequenas migalhas recebidas nas casas, roupas e calçados usados, restos de comida às portas dos restaurantes, Donga cresceu cercado pela generosidade dos restos do mundo.
         Já rapazinho, tinha alguma força. Davam-lhe ferramentas para a capina e limpeza de lotes e quintais. Em troca, alguns trocados. Moedas que lhe serviam para algumas delícias: picolé, pipoca na praça, maçã do amor nas noites de quermesse e, vez ou outra, até o luxo de uma matinê quando tinha circo na cidade.
         Donga não sofria, nem tinha cara de triste. Muito pelo contrário. Sempre foi de rir e brincar com todo mundo. Ganhou até fama de divertido por sempre alegrar as rodas de conversa em que chegava. Também nunca foi de reclamar. Cresceu aprendendo a se virar com as pequenas coisas de cada dia.
         Um dia ele soube da novidade: catar coisas na rua podia render um bom dinheiro. Donga era criativo. Inventou uma geringonça meio maluca que lhe servia para carregar o que juntava. Era algo que gostava, dava-lhe a sensação de liberdade: andar o dia inteiro atrás de garrafas, ferro, papelão e toda sorte de velharias que as pessoas não queriam mais.
         Donga se sentiu feliz com o novo trabalho. Agora só lhe faltava mesmo uma casa. Não que o banco da praça não lhe fosse confortável. Nunca tinha se incomodado com a dureza e o frio da “cama” sob o teto de estrelas. O problema é que a cidade tinha crescido muito e dormir na rua era correr riscos de morte.
         Sendo assim, Donga decidiu: teria sua casinha. Cercou de paus um quadradinho de mato, às margens da rodovia de acesso à cidade. O resto foi moleza. Para um catador isso era questão de menos. Escolheu as melhores chapas de lata, os restos mais resistentes de uma marcenaria, os plásticos mais duráveis, e pronto! A casa ficou linda! Tinha porta, janela e até divisão de quarto e cozinha.
         Donga não cabia em si de contente. Sua casa não era um primor? Animado, cortou o mato em volta, deixou um pequeno terreiro limpinho. E uma lata plantada com cebolinha não ia bem? Achou que sim, mesmo porque tinha feito uma pequena fornalha movida a serragem e pretendia cozinhar.
         Uma onda de entusiasmo tomou conta do catador. Seus ávidos olhos agora perseguiam tudo o que pudesse servir para a montagem de seu novo lar. E que inestimáveis tesouros continha o lixo desprezado às portas: vasilhames de cozinha, vasos para enfeites, caixas preciosas, e quem diria... Até quadros para as paredes.
         Em pouco, a casa de Donga tinha tudo que pudesse querer. Sobre o telhado, colocou uma Bandeira do Brasil capturada num final de jogo da Copa. Ah, que lindeza aquele verde e amarelo tremulando ao vento! Atrás da casa pendurou um cordão para secar as roupas lavadas no córrego, ali perto. Por fim, guarneceu a porta de entrada (que também era a única) com mudas de roseiras, amarelas, restos de uma poda de jardim que trouxera lá do Seixas. Ah, que felicidade, o lar tão bonito!
         Ao voltar do trabalho, Donga sempre parava um pouquinho lá na curva da estrada de onde podia ter uma visão completa de sua moradia. Que lugar bonito ele tinha preparado! As pessoas que passavam de carro por ali, deviam mesmo ficar espantadas com casinha tão alegre. Era bem capaz que ficassem curiosas para conhecer seu feliz morador... Com certeza haveriam de querer até estar no lugar dele...
         Foi por isso que Donga tomou a última providência: pendurou na cerquinha de entrada, disfarçado entre a parreira de chuchu, um pequenino chifre de boi. O povo dizia que era bom para afastar inveja. E ele não queria correr o risco de ver sua vida desandar. Afinal não era comum se encontrar por aí, pessoas como ele, com tanta sorte!

MARINA ALVES GONTIJO é natural de Lagoa da Prata, MG. Escritora, poetisa, autora do livro de contos “Sombras e Assombrações” (2007). Formada em Pedagogia, pós-graduada em Psicopedagogia. É membro da ACADELP- Academia Lagopratense de Letras; colunista do jornal INFORMAÇÃO. Conta com trabalhos publicados na revista AMAE Educando, em coletâneas, antologias, e jornais locais. Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.


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7 comentários:

  1. Agradeço à Helena Frenzel pela oportunidade de participar de 15 contos+. Parabenizo aos companheiros pelas brilhantes participações, ao José Cláudio pelo prefácio escrito com a competência de sempre. E a você que aceitou o convite e veio conhecer, um abraço da Marina Alves. Conheça o trabalho dos companheiros, você vai gostar, tenho certeza!

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  2. Sempre a emoção toma conta de mim!

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  3. Aceitei o convite e vim conferir na certeza de encontrar aqui um texto à altura da capacidade intelectual da autora, de quem sou leitora diaria. Beijo de Zélia

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  4. Na medida em que me aprofundava pelo texto, lembrava daquela máxima que diz: TUDO É UMA QUESTÃO DE PONTO DE VISTA. Mas, ao final, penso ter ido além, e refiz o dito. TUDO É UMA QUESTÃO DE O QUANTO QUEREMOS, REALMENTE, A FELICIDADE POR PERTO.

    Talvez Donga não fosse tão feliz ao fim de tudo se, lá no começo da vida, tivesse nascido em berço melhor. Para alguém de posses, seria inimaginável viver como Donga vivia. Uma casa como a dele? Sequer entrariam. O trabalho que ele fazia? Morreriam mas não fariam. No entanto, era aquila a vida que Donga conhecia. A felicidade, para ele, estava num copo plástico com água potável, meramente para matar a sede, e não em uma garrafa de uma bebida importada qualquer.

    Cada item conquistado com seu sacrifício tinha valor, e ele sabia das dificuldades de se conseguir tal coisa. E quando tudo vem de mãos beijadas? Damos valor?

    Acredito que o momento mais feliz de seu conto foi, justamente, o chifre de boi. Sim, claro. Pois todo aquele que tem um mínimo de consciência da vida, invejaria o Donga, sua felicidade e, principalmente, sua determinação em sobreviver e vencer, mesmo que do jeito dele.

    Marina, minha querida amiga. Muito bom te re-encontrar, e ainda mais num espaço como este, tão bem organizado pela Helena. Como o Zé Cláudio escreveu no prefácio, deu frio na barriga, mas ao ver quem eram os outros autores, brotou um sorriso imenso.

    E que conto maravilhoso você deixou aqui, Marina. Leve e de uma sabedoria e talento sem igual. Próprio da Marina que conheci lá pelo RL.

    Um abraço carinhoso pra ti, minha amiga.

    Marcio.

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  5. Uma honra estar aqui,conhecer uma autora como você,a qualidade de sua obra faz cair o queixo,moça!...Parabenizo pelo trabalho ,que nem precisava dizer,é de primeira e deixo meu abraço com votos de muito sucesso,sempre!Adah

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  6. Simplesmente magnífico seu conto! Parabéns, Marina! Um abraço!

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  7. Lindo conto, escrito com muita sensibilidade! Um abraço.

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