Por Ailton
Augusto
I. A contrariada
Olhou pela
janela: a lua nascia de um amarelo forte, que contrastava com o tom avermelhado
do vinho na taça. Aliás, vinho já quente, pois a escolha de um vestido para a
festa estava tomando mais tempo do que gostaria. Mais que isso: ela tinha uma
excessiva dificuldade, devida em boa parte ao fato de que ir àquela festa com
seu namorado era uma obrigação.
Tratava-se da
festa de aniversário de uma criança, filha de um colega de trabalho dele. E ela
sabia como se sentiria ao ter de sentar na mesa com gente desconhecida e
obrigar-se a conversar sobre amenidades, comendo mais do que gostaria para
manter a boca ocupada com algo mais que palavras vãs, trocadas para ocupar o
tempo.
A noite, já
entrada, se anunciava fria e ela optou por um vestido preto de corte simples, o
qual seria encimado por uma echarpe igualmente preta. O tipo de evento talvez
exigisse dela uma roupa mais alegre, de cores festivas. Contudo, ela optou pelo
extremo oposto: iria de luto por sua noite perdida. Teria sido tão mais fácil
inventar uma desculpa para não ir...
II. O inapto
Ele estava no
ponto de ônibus quando recebeu a ligação convidando para a festa. Demorou um
pouco para entender o convite, pois não se via tão íntimo do pai da criança,
com quem havia estudado dez ou doze anos antes. Acrescente-se, a título de
informação, que o rapaz em questão era totalmente inapto para o jogo de cena
social e, em sua visão restrita, nenhuma afinidade justificava sua estadia
naquele evento.
Apesar disso,
decidiu ir. Reconhecia que a festa tinha, em si, muito poucos atrativos —
apenas a possibilidade de rever duas ou três pessoas conhecidas com quem ele se
encontrara de modo casual nos últimos anos, após a formatura de todos eles...
Com um pouco de sorte, ele poderia aproveitar a ocasião para se reaproximar das
pessoas, principalmente o anfitrião e, assim, voltar a desfrutar da sensação de
ter um amigo. Ele, inapto e solitário.
Poder-se-ia dizer
mais coisas a seu respeito, inclusive as inúmeras dificuldades que teve para
escolher um presente para a criança pequena, as quais resolveu com a
indelicadeza de colocar uma quantia de dinheiro em um envelope que seria
entregue, com muitos rodeios, no dia da festa.
III. Dois pares
de olhos
Antes que o
leitor pergunte, o inapto e a contrariada não eram namorados. Eles sequer se
conheciam. Na festa, por um acaso, terminaram sentando na mesma mesa.
Explica-se o
acaso: como a casa de eventos era acanhada, optou-se por reduzir a quantidade
de mesas para poder deixar mais espaço livre para a pista de dança. Com isso, o
rapaz inapto, tímido como ele só, teve de pedir licença e sentar-se entre
desconhecidos. Ele sentia-se um homem de sorte por não ter sido rejeitado
naquela mesa onde (como veio a saber depois) havia médicos, advogados e outros
“doutores”.
A conversa, como
todos de algum modo esperavam, versou sobre amenidades. Contaram-se muitas
histórias velhas envolvendo o dono da festa. Contadas a título de anedota, elas
tinham também o objetivo de justificar, por parte de quem detinha a palavra, a
presença naquela festa, junto dos demais convivas.
Em algum momento
da noite deixaram as tábuas de frios e coisas afins em uma mesa na outra ponta
do salão. Entretanto, ninguém se animava a ser o primeiro a buscar tais
alimentos com medo de parecer esganado ou morto de fome. A moça contrariada,
que, como se nota pela alcunha, não via razão de ser da sua presença na festa
decidiu puxar a fila. Foi até a mesa e montou um pratinho.
Voltando à mesa,
ela decidiu oferecer àquele rapaz encolhido parte da comida que tinha em seu
prato. Com um sorriso ele aceitou e, como retribuição, ele roubou um doce da
mesa do bolo e trouxe para ela, cujo nome ele nem se lembrava mais, apesar das
apresentações do início da noite.
Os lábios dela,
até então uma inexpressiva linha reta, fizeram leve curva ascendente no esboço
de um sorriso de gratidão e, pareceu a ele, identificação. Identificação?... Os
dois pares de olhos, o dela e o dele, originam olhares que se cruzaram durante
a noite num diálogo mudo, mas sem segundas intenções. Cabe dizer ainda que, da
parte do rapaz, que era um pouco mais novo que ela, qualquer relação seria
complicada diante do fato de ele estar frente a uma jovem senhora já
comprometida, muito ensimesmada e bastante indiferente a julgar pela contenção
de seus gestos e palavras.
Eles apenas se
entendiam no seu deslocamento, tão grande que nem sequer conseguiam largar a
conversa amena com os outros para dedicarem-se a um diálogo que se fizesse
paralelo e mais interessante para eles. Nesses dois pares de olhos dançava a
mesma pergunta: que estamos fazendo aqui?
IV. Comentários
de fim de noite
A moça saiu antes
do fim da festa, arrastando seu namorado com tato suficiente para não soar
grosseira a sua retirada quase à francesa. Desacompanhado por natureza e
abandonado pela sua companheira de infortúnio descoberta ao acaso, o rapaz
inapto só permaneceu até o fim da festa porque um antigo colega de estudos, que
havia chegado atrasado e estava em outra mesa, ofereceu-lhe carona.
No trajeto de
volta, ele e seu colega dedicaram-se aos comentários habituais sobre festas
dessa natureza, além de tecerem algumas considerações a respeito deste ou
daquele convidado. Dois pares de olhos se cruzam e o motorista pergunta: mas
como você se virou naquela mesa? A moça do vestido preto, pelo que vi de longe,
pareceu tão antipática e esquisita...
O inapto fazia
tanta justiça ao apodo que terminou concordando com quem lhe dava carona.
Criticou a moça com cujo deslocamento se irmanou. E o fez em busca de que tipo
de apoio ou afirmação?
AILTON AUGUSTO é
natural de Juiz de Fora/MG. Graduou-se em Letras pela UFJF, onde estudou com
mais afinco as literaturas de língua portuguesa e língua espanhola. É escritor
amador, com textos dispersos entre os blogs umeternobrainstorm.blogspot.com e
verdadesprovisorias-jf.blogspot.com. Junto com outros dois amigos, atua como
editor da Revista Encontro Literário (ISSN 2237-9401,
revistaencontroliterario.blogspot.com).
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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