quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O LUTHIER



Por Marilise Batista

Naquela fria noite de Madrid, o senhor Juan Carlos era o único corpo caminhando pelo escuro e estreito beco de paralelepípedos. Sendo muito tarde, ainda assim lhe parecia imprescindível voltar a seu atelier para revisar aquela encomenda tão especial antes do amanhecer.
Apesar da nostalgia do Mar Mediterrâneo, a saudade do sabor indescritível do grão-de-bico cozido ao estilo de Andaluzia e de alguns latejantes calos em ambas as mãos, ele tinha se instalado naquela cidade das oportunidades porque todos os meses uma miserável aposentadoria se apoiava em suas costas e juntos se alimentavam de um prato de lentilhas.
Dizia-se que Juan Carlos havia sido parido pelas mãos da bisavó entremeio de violões. Sua intimidade com a madeira e o aguçado ouvido para os instrumentos musicais foram transpassados naturalmente pelo bisavô paterno.
Em todos os cantos das províncias de Andaluzia todos comentavam que os homens da família Castillo fertilizavam os futuros luthiers da Espanha. Por causa dessa fama, sempre havia um cochicho na hora da missa onde se comentava que as esposas dos Castillos pediam bendições ao padre para que Deus lhes mandasse fortes  filhos varões. Elas desejavam ser reverenciadas pelos maridos pela boa procriação e perpetuação do sangue dos excelsos artesãos.
O senhor Juan Carlos entrou no atelier, acendeu as luzes e caminhou em direção à mesa principal. Naquele lugar as prateleiras estavam repletas de ferramentas, máquinas, esqueletos de violões e um sugestivo olor a pó de serragem.
Depois de quarenta anos dedicando-se ao mesmo ofício, ele se reconhecia como um artesão experimentado na arte da lutheria, mas pela primeira vez sentia uma leve dor no estômago.
Fazia um mês que havia recebido um pedido para a elaboração de um violão que estaria destinado a um famoso violinista flamenco. Sua intuição lhe advertia que aquele músico não somente se preocuparia da qualidade dos cedros, abetos ou ciprestes selecionados como matéria prima, mas que a ele lhe importaria comprovar se seria cumprido o desafio de transformar paus de madeira maciça em sensações e emoções da alma cigana.
Depois de uma extensa revisão do apreciado violão lhe pareceu que tudo estava em perfeitas condições. Mas a ultima palavra seria a opinião de seu refinado e exigente cliente.
Cansado e padecendo de dor nas costas sentou-se numa cadeira para descansar os ossos. De súbito deu um salto assustando-se com três fortes batidas na porta do atelier. Sem se mover viu como a porta rangia abrindo-se bem devagar. Com passos seguros, firmes e precisos entrou o mesmíssimo violinista de flamenco, o senhor Miguel Ramirez.
Miguel Ramirez, camisa de seda branca, era um desses homenzarrões que caminham pela vida sussurrando um espanhol cigano ao ouvido de mulheres de camas alheias. Com seus negros cabelos longos era um tipo agradável à vista, e até seus rivais do mesmo gênero encontravam-no desgraçadamente um imbatível sedutor.
Fixamente sem pestanejar, Miguel Ramirez encarou profundamente os olhos do artesão. Sequer o cumprimentou, pois homens como ele somente ocupavam a boca para os murmúrios da língua romanês e seus ouvidos para o lamento de um violão cigano.
Ramirez não entrou caminhando, mas sim deslizando pelo atelier e arrastando com seus sapatos de tacos o pó de serragem das árduas semanas de trabalho. O senhor Juan Carlos tampouco quis lhe dizer nada e, com um tímido gesto com o dedo indicador, lhe apontou seu violão para que ele pudesse verificar a qualidade do trabalho executado.
Fechando os olhos o violinista abraçou delicadamente o instrumento constituindo-se num casamento monogâmico. Com as pontas dos dedos o acariciava como se fosse o corpo de uma bela donzela perfumada de tulipas. Aquele olor da madeira o levou ao mais puro estado de êxtase e inspiração musical. Imediatamente Ramirez começou com um rasqueado flamenco.
Juan Carlos, sentado e emudecido, desfrutava daquele momento constatando que a matéria orgânica finalmente alcançava sua plenitude artística nos dedos daquele grande músico.
De repente as luzes se apagaram, o atelier se escureceu e apenas a lâmpada que estava no teto em cima do guitarrista continuou iluminando a sala. E em lapsos de segundos tudo se transformou num palco de algum pequeno teatro de Madrid.
Frente aos olhos do artesão, que escutava a paixão e a intensidade da música cigana, apareceu uma bailarina de olhar esquivo, castanholas nas mãos, vestido vermelho e flores nos cabelos. Ao outro lado do tablado se ouvia o canto nostálgico e o toque de dedos e palmas no compasso de três tempos realizado pelos músicos que sempre eram seus acompanhantes nas apresentações. O sapateado flamenco, ah!, como não tê-lo ali mesmo se o chão do atelier era feito da mais pura madeira européia.
Música! Canto! Dança! Palmas! Sapateado! Castanholas... OLÉ!!!
Quando Miguel Ramirez deixou de tocar o violão, Juan Carlos presenciou como misteriosamente todas as luzes do atelier voltaram a acender. O artesão olhou para os lados e teve que se convencer de que naquele lugar não havia mais ninguém além do músico e sua própria existência.
Miguel Ramirez lhe sorriu. Era um sinal claro de que o instrumento estava esplendido, inigualável, magnífico e sublime.
— Quanto lhe devo?
— Nada, senhor Ramirez, nada. Leve-o, por favor.
Ramirez guardou a relíquia no case e saiu pela porta sem se despedir.
A luz do sol que entrava pela janela acordou Juan Carlos. Tanto tinha sido o cansaço e o sono que o pobre artesão não se deu conta de que tinha passado a noite sentado na cadeira. Levantou-se e olhando-se no pequeno espelho pendurado na parede esfregou os olhos com as mãos. Estava sedento por uma xícara de café com leite.
Continuava cansado e padecendo de dor nas costas. Voltou a sentar-se na cadeira para descansar os ossos. De súbito deu um salto assustando-se com três fortes batidas na porta do atelier.

MARILISE BATISTA é paulista, pedagoga pela PUC-SP, radicada no Chile. A autora assume que seus textos são impregnados de um dramatismo e uma linguagem mais familiares à cultura hispânica. Por se sentir cômoda dentro desse estilo na composição de seus contos, sendo brasileira, surpreendeu uma banca examinadora e ganhou um prêmio num concurso literário no Chile com o Conto «Bendiciones de Julia». Reconhece que sua vertente na língua portuguesa se reflete melhor na literatura infantil. Na elaboração dos contos infantis constrói personagens minuciosamente estudados dentro de aspectos psicológicos bem delineados, cuja moral ou a mensagem implícita não se esgota no final do texto. Seu conto infantil «O Grande Talento de Lázaro» foi publicado na Revista Viverde, «João Rabugento, o Ladrão de Pipas» faz parte do projeto Formadores do Saber pela Fundação Santo André, e «Os Pezinhos de Sofia» está na Antologia Infantil Historias Para Você Dormir 2, pela editora Valladares.




Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados à autora. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

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