quinta-feira, 15 de agosto de 2013

TRÊS AMIGOS



Por Heitor Herculano Dias
           
Em memória do Índio Galdino.

O emblema do clube Vasco da Gama, belo trabalho feito em latão, sempre atraiu a atenção de quem se dignava olhar ao menos por uns poucos segundos para o tosco carrinho de madeira, construído com tábuas arrebanhadas por ele aqui e ali, sob o qual prendera as quatro rodinhas de rolimã. Em uma das extremidades daquele caixão móvel ficavam as duas travas que suportavam um pedaço de cabo de vassoura, onde as mãos do negro Joaquim se apoiavam para dirigir seu veículo de carga. Entulhando-o de pedaços de papelão amarrados por sebosas fitas plásticas, ele fazia invariavelmente o mesmo percurso através das ruas do velho centro da cidade, Mem de Sá, Gomes Freire, Lavradio, até recolher-se, tarde da noite, debaixo de qualquer marquise, para suas poucas horas de sono. Seus dois amigos, Manoel e Antonio, bem mais novos do que ele, faziam o que podiam para velar por seu sono, uma dormida com poucos sonhos e muitos sobressaltos, pois que os trocados adquiridos com a venda do papelão tinham que ser vigiados atentamente, sob pena de o café com pão seco do dia seguinte permanecer unicamente em seu famélico desejo. Há anos que os três companheiros andavam juntos, inseparáveis, todos conhecidos pelos frequentadores dos botequins da região unicamente por seus apelidos, muito embora de lusitanos nada possuíssem, a começar por Joaquim, crioulo retinto que nem sequer origem de português ultramarino possuía para justificá-lo. Às vezes se esquecia de que por Claudionor lhe tratavam em seus dias de mocidade, mas se instado a mostrar algum papel onde estivesse testificado seu verdadeiro nome de nascença, nada poderia oferecer como comprovação de seu verdadeiro nome de batismo, considerando-se não mais que um eufemismo esse termo, privilégio dos felizes cristãos que tiveram salpicada sua testinha com água da sacra pia católica.
Durante suas inúmeras noitadas de recolhimento forçado em delegacias policiais, graças a alguns copos de cachaça além da conta, que culminavam por entreveros contra os co-participantes dos abrigos sob as incontáveis marquises da cidade, declarara sempre aos impacientes plantonistas da lei se chamar Claudionor. De quê, não lhe perguntassem porque ele nada poderia esclarecer. O emblema vascaíno, achado em um terreno baldio transformado em estacionamento clandestino, vez por outra nas avançadas horas da madrugada em hotel de alta rotatividade para os carecedores de economias, foi por ele pregado cuidadosamente na frente do seu transportador de papelão, e não demorou muito para lhe granjear o epíteto de Vascaíno, logo substituído por Joaquim, para muitos um sinônimo. Destino ingrato, o dos três inseparáveis amigos, condenados a viver pelas tristes, escuras e escarradas vielas, que de dia ainda continham sinais para lhes alegrar, qual uma ou outra saudação, uma brincadeira qualquer concernente ao grande emblema vascaíno, e na melhor das hipóteses alguns centavos a mais no quilo do papelão vendido. Quando a noite descia com suas luzes coloridas dos pequenos hotéis, o vai-e-vem dos perambulantes solitários à espreita pelos cantos, e os perfis ondulantes das bundas e seios nos tristes portais, a única preocupação de Joaquim e seus companheiros era escolher o ponto mais estratégico para mais uma noite ao relento, de preferência diante da porta de um banco. Nada de se acostarem perto de restaurantes, nem de bares, muito menos perto daqueles velhos sobrados de hospedagem, convite a uma expulsão ao raiar do dia, certamente sonorizada a palavrões e temperada a jatos de água fria.
Joaquim andava preocupado com a saúde de Antonio, que já não era tão lépido e fagueiro desde a tarde em que tentou atravessar atrás dele a Lavradio, descurando da atenção necessária ao ponto de a roda de um caminhão esmagar-lhe um dos pés, acontecimento que encheu profundamente de mágoa e piedade pelo fiel amigo o bom Vascaíno, fato que tampouco passou desinteressado diante o solidário Manoel. O acontecido não privou Antonio de caminhar, mas os deslocamentos do trio pelas ruas já não podiam ser feitos como antes, visto que os passos de Antonio careciam de alguma ligeireza. Em seus olhos Joaquim podia divisar sofrimento e dor, olhos de um amarelo-cinza que emitiam o brilho completo da incompreensão diante os violentos e inesperados acontecimentos que a vida lhes reservara. Em algumas ocasiões de festa, traduzível tal termo por imprevistos encontros de sólidos restos de refeições nas lixeiras, não sendo difícil entre esses encontros a descoberta de uma costeleta de porco onde seu feliz consumidor havia esquecido alguns vestígios de aproveitável carne, o pobre e manco Antonio esquecia as doloridas lembranças daquele pesado pneu.
Manoel, dos três o mais valente, possuía bem pulsante o desprezo e o medo que os seres privados de teto, nas grandes cidades, têm pelos homens fardados, e não podia deixar de expressar a seu modo o desagrado que lhe causava a aproximação de um policial, característica essa que a Joaquim requeria contornar diplomaticamente com um “Olá, chefe” ao dividirem a calçada com algum dos objetos da antipatia do amigo. As asquerosas botinas faziam ressoar na cabeça de Manoel passados pontapés em portas frágeis, que se rompiam sem muito esforço para seus executores e liberavam gritos histéricos de mulheres e crianças não-cidadãs da república infernizada, ocasiões em que sem dúvida alguma o mais aconselhável, para seres desprovidos de resistência física proporcional aos mastodontes fardados, melhor conselho não havia senão o de correr. O perfil encurvado daquele que agora se aproximava dos três amigos, entretanto, não terminava em uma botina, mas certamente nuns grosseiros pés imundos, cheios de crostas negras onde à primeira vista seria difícil discernir entre os efeitos da falta de água e a acomodação de cascas de recém cicatrizadas feridas; e a voz enrolada por álcool e catarro se dirigiu a Joaquim dentro do fechado dialeto dos deserdados. A conversa que se estabeleceu entre os dois foi apreciada com curiosidade por Antonio e Manoel, não lhes escapando o nervosismo que o suor do interlocutor do amigo Vascaíno fazia transparecer, estado de espírito que se concretizou na frase de despedida do imundo visitante: “Eles estão pensando que sou algum otário. Acertei um com uma garrafa no quengo! Baguncei mesmo, e corri!”. Ficaram os três a apreciar a figura maltrapilha, suja e malcheirosa que se afastava a passos incertos, largando um lastro de álcool e tragédia humana.
— Ele vacilou, vacilou mesmo, meus amigos —, foi o comentário único que Joaquim se importou em fazer para Manoel e Antonio, que, emudecidos, fixaram nele seus olhares de apoio e compreensão. O recente desabafo que os três ouviram do desconhecido, agora sumido na escuridão, não lhes roubou a preocupação pela escolha de um ponto para o pernoite, posto que era mais que chegada a hora de descansar das longas caminhadas à cata de papelão e jornal. Era a hora para o merecido descanso, do qual evidentemente estavam dispensadas as faiscantes mas não tristes meninas encostadas nos portais mal iluminados, vivamente interessadas em catar também seus próprios papéis e papelões nos manjados hotéis hispânicos com seus letreiros azuis e vermelhos. O iodo ardia na cabeça do homem, mas o que mais o incomodava era aquele triste curativo sobre a testa, que o impedia de enxergar com facilidade. Saiu do pronto socorro da Praça da República tateando os bolsos, mal ouvindo as recomendações da enfermeira quanto a evitar beber pelo menos por vinte e quatro horas, a fim de não complicar o efeito do soro antitetânico. Ele sempre soubera que esse tal de soro as pessoas tomam quando se espetam com pregos enferrujados, mas não se lembrava de ter se ferido com nenhum prego. Em todo caso, esses doutores sabiam mais, e o que importava era terem estancado a sangueira da cabeça, mas tinha outra coisa agora a lhe causar preocupações, e daí seu reflexo em levar as mãos aos bolsos da calça na procura ávida. Mas lá estavam eles, intocados. No pronto socorro tem sempre um tira de plantão, e quem sabe alguém podia ter revistado suas roupas na hora dos curativos? Mas não, mesmo porque ele não precisou tirar a roupa, aliás, só a camisa, que era sangue puro. Quando voltasse para casa, a porca da Juçara naturalmente iria fazer aquele auê — “O que foi isso? Foi assaltado? Ai, meu Deus!”. — Assaltado coisa nenhuma, vai dormir antes que eu é que te assalte com um par de cadeiradas nas fuças! Deixa pra lá, e meu dinheiro? Garfaram minha grana no hospital? Não, não, está aqui, ainda bem. Preciso agora é de um canto tranquilo para uma cheirada no capricho, claro.
Aqui nestas bandas da cidade não tem erro. Não se pode é vacilar, pois vira e mexe passam os homens como não querendo nada, suas caretas de otário olhando todo mundo de dentro do camburão. Uns veados, isso sim. Ele precisava era achar uma farmácia aberta, tem que ter alguma de plantão por aí, não é possível. É melhor tratar disso primeiro, depois me entoco num cantão qualquer e cheiro uma no capricho, mas antes de tudo a farmácia, porque senão o diabo foge. O que é que está olhando, o que foi, nunca viu ninguém assim não, e coisa e tal, e ele foi aos tropeços pelas calçadas, a camisa de azul quase nada, mas de vermelho-sangue quase tudo, e por pouco não dá de cara com um poste na rua mal iluminada, e aparece-lhe de repente a mulher de calça branca, colante, peitos quase se derramando blusa estampada abaixo, e vamos lá amorzinho, vem cá, vem, gostoso, e vai catar outro, vagabunda, que não tou a fim, e saia do meu caminho, e afinal uma farmácia aberta. Só um cliente, logo pediu e pagou, os caras e a moça do caixa espantados e comentando as manchas da camisa. Saiu rápido que nem precisava embrulhar, se demorassem mais era capaz de quebrar todos eles, cambada de palhaços, me dá logo essa porcaria desse vidro, quanto é, toma lá. Antonio foi o primeiro a pegar no sono. Diante da marquise havia uma árvore que escurecia aquele cantinho para a soneca. Manoel ainda demorou um pouco, desconfiado, olhando o movimento dos automóveis, que àquela hora era quase nenhum ali na Mem de Sá. Passou um gato malhado, e ele, só de brincadeira, deu-lhe uma corrida, mas foi chamado de volta por Joaquim. Não era hora disso, o melhor era mesmo se acomodarem no largo papelão, junto ao portal da agência bancária, que amanhã seria outro dia, e nada como um descanso merecido, embora a sensação de um buraco na barriga incomodasse. Mas fome é assim mesmo, não ia passar mais ninguém por ali para o risco de pedir um trocado para o pão. Cachaça não havia, que problema, meu Deus! As criancinhas corriam de um lado para o outro, todas elas vestidas de branco. Todas não, havia uma menininha escura, com os cabelos amarrados em duas pequenas trancinhas coladas ao coro cabeludo, e ela olhava sorridente para Joaquim, perguntava-lhe alguma coisa que ele não entendia. Por mais que insistisse, a menina não se fazia entender, e aí então ele notou que a crioulinha era a cara da Isabel. Coitadinha da Isabel, onde andou esse tempo todo que nunca mais procurou seu pai? Mas também pudera, um pai mendigo e cachaceiro, nenhuma filha quer saber. E aí as outras garotinhas foram se chegando para perto de Isabel, mas nenhuma delas sorria. Só Isabel mostrava para ele seus pequeninos dentes de seus cinco aninhos. Seriam cinco mesmo? Não se lembrava mais.
Não compreendeu as outras meninas, de repente, a puxarem Isabel pelos braços, gesticulando. Umas puxavam, outras faziam gestos para ele freneticamente, nervosas, com medo. Queriam levar Isabel dali, mas ela lutava para se libertar dos braços da turminha.
Ele não compreendia nada, e estranhou quando delas vieram umas gotas frias, bastante esquisitas, direto na cabeça dele. Diabo, por que Isabel e suas colegas estão a me molhar? Chegou a armar um baita sorriso, menina inteligente do pai, sabe que o velho aqui adora uma pinga e está é me molhando com uma caninha da boa, ah, é isso! Saiu daquele sonho bom no meio de um forte cheiro que era só parecido com cachaça, mas que de cachaça só se fosse parati do demo, porque logo as labaredas azuis e amarelas lhe cercaram o corpo, e as dores inclementes e dançantes subiram de seus pés descalços para a barriga, a cabeça.
Tentou afastar as quentes línguas esvoaçantes, sem sucesso. Sua garganta se fechou, seus olhos logo se derreteram, e o último aspecto da vida penetrou por seus ouvidos na forma dos latidos assustados e chorosos de Antonio e Manoel, prudentemente afastados daquela inesperada e quentíssima roupa que envolvia o corpo em convulsão do bom e paciente amigo Joaquim. Ganidos de incompreensão para com o mundo dos homens ecoaram por um bom tempo, depois somente o ruído dos passos apressados de alguém que voltaria orgulhoso para casa. Afinal, nenhum vagabundo poderia agredi-lo sem um merecido castigo.

HEITOR HERCULANO DIAS é natural da cidade do Rio de Janeiro. Diplomado em Direito pela antiga Faculdade de Direito do Estado da Guanabara, exerceu a advocacia por mais de três décadas após saltitar algum tempo por entre funções burocráticas diversas e o Desenho — técnico e artístico — este último chegando a iludi-lo algum tempo como sendo sua natural vocação. Aposentado, mergulhou fundo na Literatura, inicialmente tentando o garimpo poético, do qual logo se afastou para se dedicar essencialmente a crônicas, contos e romances. Considera a produção literária seu melhor remédio para uma longevidade saudável; e ama a vida tal como ela é, reconhecendo a todas as pessoas o direito divino ao livre arbítrio e sem radicalismos de quaisquer espécies. Tem em seus filhos e sua neta Lara Estrela o coroamento de seu feliz estado de espírito. Publicou os romances «AlphaZma» e «Os Paulistas», «Contos Suburbanos» e um pequeno livro de viagens: «O Jeito Australiano de Ser». Recentemente concluiu seu terceiro romance, intitulado «Os Apóstolos Desventurados».





Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

Um comentário:

  1. Excelente conto, além de belíssima homenagem. Convida-nos a refletir em que se transformaram alguns seres ditos humanos...

    ResponderExcluir

Caro(a) Leitor(a), lembramos-lhe que comentários são responsabilidade do(a) respectivo(a) comentarista e informamos que os mesmos serão respondidos no local de postagem. Adotamos esta política para melhor gerenciar informações. Grata pela compreensão, muito grata por seu comentário. Volte sempre, saudações!