quinta-feira, 15 de maio de 2014

Maranhão em Contos - Apresentação

Duas palavrinhas definem bem os motivos que me levaram a montar este ebook: a palavra alemã ‘Heimat’ e a palavra portuguesa ‘saudade’, ambas consideradas de difícil tradução. No caso de ‘Heimat’, muito mais do que terra natal, diria que é aquilo que faz referencia tanto ao lugar em que uma pessoa nasceu e se criou, quanto às suas experiências na infância.
A meu ver, ‘Heimat’ é muito mais do que apenas terra natal ou pátria; são as origens, os costumes, a cultura, a língua, as pessoas, os cheiros, os sabores, as texturas, tudo o que (geralmente de bom, mas não necessariamente) conseguimos recordar quando evocamos as expressões ‘infância’, ‘família‘ e ‘terra natal’.
E ‘saudade’... bem, ‘saudade’ não significa só melancolia, ‘saudade’ é uma fotografia antiga, um registro bom de algo que passou, “... um silvo vago de longe na tarde muito calma.” (1), como Pessoa declarou.
Diria que saudade foi o motivo maior. A vontade de (re)-sentir — sentir outra vez, digo, adoro essa liberdade de expressão que as línguas nos proporcionam: inventar palavras para o que não se pensa ou sabe haver, criar expressões para o indizível, e foi assim que ‘saudade‘ e ‘Heimat‘ passaram a existir, disso não duvido. — Portanto: voltar a sentir, ‘re-sentir‘ os cheiros e os gostos, buscar sotaques e sons familiares nas entrelinhas fez-me pedir a Antonio Fernando Sodré Júnior, Antônio Maria Santiago Cabral, Eveline Sá, José Neres, Lenita Estrela de Sá e Marcos Fábio Belo Matos que, através de seus textos, trouxessem um pouco do Maranhão para este volume, não só do Maranhão que trago no peito, claro, que este não se deixa conhecer por outrem, mas do Maranhão sentido por quem teve a mesma origem e provou do mesmo manancial cultural e literário, que segue desconhecido em grande parte do Brasil.
E estes autores me deram a honra de suas participações, gentilmente atendendo ao meu convite e permitindo que agora haja no Quintextos uma amostra deste sabor literário peculiar, coisa boa, coisas da terra: doce de espécie, jussara com camarão, casquinha de caranguejo recheada de mar.
E como não há só o que é bom no mundo, alguns textos trazem, ao invés do doce, um pouco da amarga realidade da terra, uma crítica não aos problemas sociais, velhos conhecidos, mas ao descaso de quem poderia fazer algo pela gente, mas não faz. Além de tons bem-humorados e coloridos do cotidiano e das lembranças, algumas narrativas trazem o cinza das crises existenciais e outras questões tão humanas, que ora nos levam a sorrir, ora a pensar seriamente. Porém, o ponto em comum dos textos desta coletânea é ter algo típico do Maranhão: seja em ‘falares’, lugares, ‘sentires’ e ‘queixares’; seja no jeito peculiar maranhense de ser e viver.
Com imensa alegria editei este ebook e com enorme satisfação compartilho-o, para que cheguem bem longe as histórias, os cheiros, sotaques e gostos do Maranhão, o talento de escritores novos, outros nem tão noviços assim na via das Letras, com comprovado talento mas que seguem não tão conhecidos no resto do país: enfim os encantos (em cantos e em contos) deste pedaço do Brasil, e o que é melhor: em diferentes visões.
As fotos do volume foram feitas por mim mesma, em diferentes ocasiões e lugares do Maranhão. Elas não têm qualquer pretensão artística, visaram fotografar o natural do momento, coisa que, a propósito, é bem difícil de se alcançar.
Eis então o volume inteiro à sua disposição para degustacão. “¡Que le guste!” Voilà!
Helena Frenzel.

(1) Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), Como um Grande Borrão, in O Guardador de Rebanhos, texto já em domínio público.





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quinta-feira, 8 de maio de 2014

Coletânea Especial - Em breve




Reunião de textos de novos autores maranhenses. 
Muito em breve, no Quintextos. 
Aguarde!!



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quinta-feira, 10 de abril de 2014

Conheça nossa biblioteca digital - livros gratuitos e legais

Quintextos: porque AMAMOS ebooks!

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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

As Letras na Bruzundanga daquela época


CAPÍTULO ESPECIAL - OS SAMOIEDAS

Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais pela lei; da graça tendes caído.
SÃO PAULO aos Gálatas

QUERIA evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado. 
Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais: idéias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dous séculos ou três. 
Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito. 
Lembrei-me, porém, que as minhas notícias daquela distante república não seriam completas, se não desse algumas informações sobre as suas letras; e resolvi vencer a hesitação imediatamente, como agora venço. 
A Bruzundanga não podia deixar de tê-las, pois todo o povo, tribo, clã, todo o agregado humano, enfim, tem a sua literatura e o estudo dessas literaturas muito tem contribuído para nós nos conhecermos a nós mesmos, melhor nos compreendermos e mais perfeitamente nos ligarmos em sociedade, em humanidade, afinal. 
Seria uma falha minha nada dizer eu sobre as belas-letras da Bruzundanga que as tem como todos os países, a não ser o nosso que, conforme sentenciou a Gazeta de Notícias, não merece tê-las, pois o literato não tem função social na nossa sociedade, provocando tal opinião o protesto de um sociólogo inesperado. Devem estar lembrados deste episódio — creio eu. Continuemos, porém, na Bruzundanga. 
Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.; mas todo esse folklore não tem sido coligido e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso comunicar. 
Porém, um canto popular que me foi narrado com todo o sabor da ingenuidade e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui, embora a reprodução não guarde mais aquele encanto de frase simples e imagens familiares das anônimas narrações das coletividades humanas. 
Na versão dos populares da curiosa república, o conto se intitula — “O GENERAL E O DIABO” — havendo uma variante sob a alcunha de — “O PADRE E O DIABO”. Como não tivesse de cor nem as palavras da versão mais geral, nem as da variante, aproveitei o tema, alguma cousa do corpo da “história” e narro-a aqui, certamente muito desfigurada, sob a crisma de:
SUA EXCELÊNCIA
O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. 
Por isso entrara no coupé depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade. 
Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das cousas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham... 
E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer, lembrou-se do seu discurso de ainda agora: 
“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos”... 
Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro: 
“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes”... 
O olhar, muito brilhante, cheio de admiração — o olhar do leader da oposição — foi o mais seguro penhor do efeito da frase... 
E quando terminou! Oh! 
“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!” 
A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido. 
O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda. 
O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se. 
O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem. 
Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora, o mesmo minuto da sua saída da festa. 
— Cocheiro, onde vamos? 
Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam. Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro: 
— Onde vamos? Miserável, onde me levas? 
Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas. 
— Cocheiro, onde me levas? 
Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel! 
— Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás! 
O carro voava e o ministro continuava a vociferar: 
— Miserável! Traidor! Pára! Pára! 
Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se. 
O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças...
Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados. 
Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles “libré” e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde, saíra triunfalmente, não havia minutos. 
Nas proximidades um coupé estacionava. 
Quis verificar bem as cousas circundantes; mas não houve tempo. 
Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes... 
Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra cousa, indagou:
— Vossa Excelência quer o carro?
Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras “histórias” que correm de boca em boca e se transmitem de pai a filho. 
Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis o volume. 
Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.
São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por “expoentes” e não há moça rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar. 
O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por “Escola Samoieda”. 
Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo — “caracteriza”, porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com pelotiquices e passes de mágica intelectuais. 
Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto demoradamente os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado a lhes dar um resumo de suas regras poéticas e da sua estética. 
Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante e misteriosa à sua escola, sustentam que ela nasceu do poema de um príncipe samoieda, que viveu nas margens do Ártico, nas proximidades do Óbi ou do Lena, na Sibéria, um original que se alimentava da carne de mamutes conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões. 
Essa espécie de alimentação do longínquo príncipe poeta dava aos olhos de todos eles, singular prestígio aos seus versos e aos do fundador, embora pouco eles os conhecessem. 
O príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont Vakochan, o que quer dizer no nosso calão — O silêncio das renas no campo de gelo. 
Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos “samoiedas” da Bruzundanga como sendo uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões árticas.
Tudo isto fantástico, mas graças à credulidade dos sábios do país, só um ou outro desalmado tinha a coragem de contestar tais lendas. 
Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura baixa, pouco menos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da carne de renas, de urso branco, quando a felicidade lhe fornece um. Tais homens andam em trenós e fazem kayacs de peles de renas ou focas que eles empregam para capturar estas últimas. 
As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansos hediondos, tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes. Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas e outros animais hiperbóreos. 
Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir as teorias da literatura do oceano Ártico, não são os samoiedas assim, como o contam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimens da raça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga. 
Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga... 
Em geral, os vates bruzundanguenses adeptos da tal escola samoieda, como os senhores vêem, não primam pela ilustração; e, quando se conteste no tocante à beleza de tais esquimós, respondem categoricamente que a devem ter extraordinária, pois quanto mais fria é a região, mais belos são os seus tipos, mais altos, mais louros, e os samoiedas vivem em zona frigidíssima. 
Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por idéias feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça. 
Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação da escola, apesar de nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética. 
Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo; as razões psicológicas, eu as encontrei na vaidade deles, no seu desejo de disfarçar a sua inópia poética com um padrinho esquisito e misterioso; mas o núcleo da lenda, o grãozinho de areia em torno do qual se concretizava o mito ártico da escola, só ultimamente pude encontrar. 
Consegui descobrir entre os livros de um inglês meu amigo, Senhor Parsons, um volume do Senhor H. T. Switbilter, de Bristol (Inglaterra) — Literature of the Stingy Peoples; e encontrei nele alguns versos samoiedas. São anônimos, mas o estudioso de Bristol declara que os recolheu da boca de um certo Tuck-Tuck, samoieda de nação, que ele conheceu em 1867, quando foi encarregado pela Sociedade Paleontológica de Bristol de descobrir na embocadura dos grandes rios da Sibéria monstros antediluvianos conservados no gelo, como escaparam de encontrar, quase intactos, o naturalista Pallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, em 1806. A história do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se de carne de elefantes fósse, parece ter origem no fato bem sabido de terem os cães devorado as carnes do mamute, cujo esqueleto Adams trouxe para o museu de São Petersburgo; e o príncipe já sabemos quem é. 
O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; e as que estão no volume, traduzidas, são por demais monstruosas, sempre com um mesmo pensamento denunciando uma concepção estreita da vida e do universo, muito explicável em bárbaros glaciais. 
O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali, que elas são enfáticas, sem quantidade de sentimento ou um acento musical agradável e individual, descaindo quase sempre para a melopéia ou o “tantã” ignaro, quando não alternam uma cousa e outra. 
Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas da Bruzundanga foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecem esse autor, pois nunca os vi citá-lo. 
Eles, os “samoiedas” da Bruzundanga, encontraram o mestre nos escritos de um tal Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que parece ter estado no país daquela gente ártica, aprendido um pouco da língua dela e se servido do livro do viajante inglês para defender uma poética que lhe viera à cabeça. 
Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-o por lá, como médico do exército quedival; e ele se ocupava nos ócios de sua provável mendicânça em rimar uma tragédia clássica, Abdelcáder, em cinco atos, onde havia um célebre verso de que o grande romancista nunca se esqueceu. É, o seguinte : 
“C’est de la’ par Allah! qu’ Abd-Allah s’en alla”. 
O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por demonstrar que, com semelhante “harmonia imitativa” como os antigos chamavam, obtinha traduzir, em verso, o sonido do galope de cavalo. 
Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não obstante, quando apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido com o do Tremor de Terra de Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiro André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber-lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras —“toujours des perruques”, Senhor André. 
Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os clássicos franceses, apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um pouco por ter sido marinheiro de um baleeiro que naufragou nas proximidades da terra desses lapões, entre os quais passou alguns meses. Não desconhecia o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião de verificar nos fragmentos de um seu tratado poético, citado na tradução da obra de um seu discípulo basco por onde os “samoiedas” da Bruzundanga estudaram a escola que verdadeiramente Chalat ou Chamat fundara. 
O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética das margens do glacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notoriedade e discípulos. 
Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquela espécie de esquimós, a sua pobreza de impressões e sensações, a sua incapacidade para as idéias gerais, os hinos, os cânticos, os rondós dos mesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o ofício de fazer verso, desde que se tivesse paciência; e a facilidade seduziu muitos dos seus patrícios e determinou a admiração dos bardos bruzundanguenses. 
Os discípulos de Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveis para fazer poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos erros à sua arte poética. 
A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses não permitia esse apelo à matemática; e contentaram-se com umas regras simples que tinham na ponta da língua, como as beatas as rezas que não lhes passam pelo coração, e outros desenvolvimentos teóricos. 
Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os literatos da Bruzundanga; era assim como o seu dogma de arte donde se originavam as suas fórmulas litúrgicas, o seu ritual, os seus esconjuros, enfim, o seu culto à tal harmonia imitava, que tanto prezava Chalat. 
Além desta deusa, havia outras divindades: o ritmo, o estilo, a nobreza das palavras, a aristocracia dos assuntos e dos personagens, quando faziam romances, conto ou drama e a medição dos versos que exigiam fosse feita como se se tratasse da base de uma triangulação geodésica. Ninguém, no entanto, podia sacar-lhes da cabeça uma concepção geral e larga de arte ou obter o motivo deles conceberem separados da obra d’arte esses acessórios, transformando-os em puros manipansos, fetiches, isolando-os, fazendo-os perder a sua função natural que supõe sempre a obra literária com o fim. É ela, a sua concepção, a idéia anterior que a domina e o seu destino necessário, que unicamente regulam o emprego deles, graduam o seu uso, a sua necessidade, e como que ela mesma os dita. 
Todos os samoiedas limitavam-se quando se tratava dos tais assuntos, a falar muito de um modo confuso, esotericamente, em forma e fundo, com trejeitos de feiticeiros tribais. 
Não nego que houvesse entre eles alguns de valor, mas os preconceitos da escola os matava. 
A maioria ia para ela, porque era cômodo no fundo, pois não pedia se comunicasse qualquer emoção, qualquer pensamento, qualquer importante revelação de nossa alma que interessasse outras almas; que se dissesse usando dos processos artísticos, novos ou velhos, de um pouco do universal que há em nós, alguma cousa do mistério do universo que o nosso espírito tivesse percebido e determinasse transmiti-la; enfim um julgamento, um conceito que pudesse influir no uso da vida, na nossa conduta e no problema do nosso destino, empregando os fatos simples, elementares, as imagens e os sons que por si sós não exprimiriam a idéia que se procura, mas que se acha com eles e se vai além por meio deles. 
Isto de Hegel, de Taine, de Brunetière, não era com os samoiedas; a questão deles era encontrar uma espécie de tabuada que lhes fizesse multiplicar a versalhada. Como as tais regras poéticas do suposto príncipe eram bem acessíveis à sua paciência de correcionais, adotaram-nas como artigos de fé, exageraram-nas até ao absurdo. 
Convinham elas por ir ao encontro da sua falta de uma larga inteligência do mundo e do homem e facilitar-lhes uma crítica terra-a-terra de seminaristas mnemônicos. 
Para mais perfeito ensinamento dos leitores vou-lhes repetir um trecho de conversa que ouvi entre três dos tais poetas da Bruzundanga, adeptos extremados da Escola Samoieda. 
Quando cheguei, eles já estavam sentados em torno da mesa do café. Acabava eu de assistir uma aula de geologia na Faculdade de Ciências do país; o meu espírito vinha cheio de silhuetas de monstros de outras épocas geológicas. Eram ictiossauros, megatérios, mamutes; era do sinistro pterodáctilo que eu me lembrava; e não sei por quê, quando deparei os três poetas samoiedas, me deu vontade de entrar no botequim e tomar parte na conversa deles. 
A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical, mas a estética da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas e raposas árticas. 
É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas caríssimo para os seus parentes literários dos trópicos. 
Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística, morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria. 
Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da capital da Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam ali: Kotelniji, Wolpuk e Worspikt, o primeiro que tinha aplicado o vernier para “medir” versos. 
Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do poeta Worspikt. Tratava de lua, de iceberg, — descobri eu por uma e outra consideração que fizeram. 
Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a emoção com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno das circunvizinhanças dos pólos. 
Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt: 
— Gostei muito desse teu verso: — “há luna loura linda leve, luna bela!” 
O autor cumprimentado retrucou: 
— Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela soberba harmonia imitativa, para dar idéia do luar—“Loga Kule Kulela logalam”, no seu poema “Kulelau”. 
Wolpuk, porém, objetou: 
— Julgo a tua excelente, mas teria escolhido a vogal forte “u”, para basear a minha sugestão imitativa do luar. 
— Como? perguntou Worspikt. 
— Eu teria dito: “Ui! lua uma pula, tu moo! sulla nuit!” 
— Há muitas línguas nela, objetou Kotelniji. 
— Quantas mais, melhor, para dar um caráter universal à poesia que deve sempre tê-lo, como ensina o mestre, defendeu-se Wolpuk. 
— Eu, porém, aduziu Kotelniji, conquanto permita nos outros certas licenças poéticas, tenho por princípio obedecer às mais duras e rígidas regras, não me afastar delas, encarcerar bem o meu pensamento. No meu caso, eu empregaria a vogal “a” para a harmonia em vista. 
— Mas Tuque-Tuque... fez Worspikt. 
— Ele empregou o “e” no tal verso que você citou, devido à pronunciação que essa letra lá tem. É um “e” molhado que evoca bem o luar deles, mas... 
— E com “a”, como é? indagou Wolpuk. 
— O “a” é o espanto; seria ai o espanto do homem dos trópicos, diante da estranheza do fenômeno ártico que ele não conhece e o assombra. 
— Mas Kotelniji, eu visava o luar. 
— Que tem isso? Na harmonia em “a” também entra esse fenômeno que é o provocador do teu espanto, causado pela sua singularidade local, e pela hirta presença do iceberg, branco, fantástico, que a lua ilumina. 
— Bem, perguntou o autor da poesia; como você faria, Kotelniji? 
— Eu diria: “A lua acaba de calar a caraça parva”. 
— Mas não teria nada que ver com o tema da poesia, objetou Wolpuk; 
— Como? O iceberg toma as formas mais variadas... Demais, há sempre onde encaixar, seja qual for a poesia, uma feliz “imitativa”. 
— Você tem razão, aplaudiu Wolpuk. 
Worspikt concordou também e prometeu aproveitar a maravilhosa trouvaille do amigo de letras. 
Kotelniji era considerado como um grande poeta “samoieda” e tinha mesmo estabelecido com assentimento de todos eles, as leis científicas da escola perfeita, “a samoieda”, que ele definia como tendo por escopo não exprimir cousa alguma com relação ao assunto visado, ou dizer sobre ele, pomposamente, as mais vulgares banalidades. 
Dentre as leis que estatuía, eu me lembro de algumas. Ei-las: 
1.a — Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito do real para o ideal, deve ela ter como principal função provocar o sono, estado sempre profícuo ao sonho. 
2.a —A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas; no mundo, tudo é monótono (Tuque-Tuque). 
3.a —A beleza de um trabalho poético não deve ressaltar desse próprio trabalho, independente de qualquer explicação; ela deve ser encontrada com as explicações ou comentários fornecidos pelo autor ou por seus íntimos. 
4.a —A composição de um poema deve sempre ser regulada pela harmonia imitativa em geral e seus derivados. 
E muitas outras de que me esqueci, mas julgo que só estas ilustram perfeitamente o absurdo da qualificação de leis científicas da arte. Alhos com bugalhos! 
Denuncia tal denominação, de modo cabal, a sua incapacidade para grupar idéias, noções e imagens. Que pensaria ele de ciência? Qual era a sua concepção de arte? Será possível decifrar essa história de “leis científicas da arte”? Qual!
Era assim o grande poeta samoieda. 
Além de uma gramaticazinha que nós aqui chamamos de tico-tico e da arte poética de Chalat aumentada e explicada com uma lógica de gafanhotos, não possuía ele um acervo de noções gerais, de idéias, de observações, de emoções próprias e diretas do mundo, de julgamentos sobre as cousas, tudo isso que forma o fundo do artista e que, sob a ação de uma concepção geral, lhe permite fazer grupamentos ideais, originalmente, criar enfim. 
A importância do vate lhe vinha de redigir A Kananga, órgão das casas de perfumarias, leques, luvas e receitas para doces, onde alguns rapazes, sob o seu olhar cioso, escreviam, para ganhar os cigarros, algumas cousas ligeiras. 
O bardo samoieda tomava, entretanto, a cousa a sério, como se estivesse escrevendo para a Revue de Deux Mondes uma fórmula de mãe-benta; e evitava o mais possível que alguém tomasse pé na pueril A Kananga. Era essa a sua máxima preocupação de artista. 
De todos os postiços literários, usava, e de todas as mesquinhezas da profissão, abusava. Era este de fato um samoieda típico no intelectual, no moral, no físico. 
Tinha fama. 
Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa, porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quisessem seguir. 
Já temos muitas bobagens e são bastantes. Fico nisto.

*  *  * 

"É ocasião de notar aqui uma singular feição dos poetas da Bruzundanga. 
Todos os vates de lá, em geral, são incapazes de comparação, de crítica e impróprios para a menor reflexão mais detida, e, com a sua mentalidade de parvenus aperuados, estão sempre dispostos a bajular os titulares ou os apatacados burgueses, para terem o prazer de ver mais perto as suas mulheres e filhas, pois se persuadiram que são elas feitas de outra substância diferente daquela que forma as cozinheiras e os pequenos burgueses. 
Tão tolos são eles que não se lembram que tais marqueses e mais barões da sua terra são de origem tão humilde e tão vexatória em face do critério nobiliárquico que os próprios portadores de tais títulos fidalgos ocultam o mais que podem a sua ascendência." - Do capítulo XXI - PANCÔME, SUAS IDÉIAS E O AMANUENSE.  
Nota: amanuense é termo antigo para escrevente. Textos extraídos de Os Bruzundangas,  de Lima Barreto (1881-1922).

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Uma Homenagem a Lima Barreto

























Queridos Leitores,

Nos próximos dias publicaremos aqui alguns dos melhores trechos da coletânea de crônicas Os Bruzundangas, de Lima Barreto,  publicada em 1922, ano da morte do autor. Não sei se essa coletânea foi publicada por primeira vez antes ou depois de seu falecimento, os dados do texto no qual me baseei não são claros a respeito. A obra de Afonso Henriques de Lima Barreto já está em domínio público e pode ser livremente acessada no site dominiopublico.gov.br

Particularmente acho que essas crônicas continuam muito atuais, atualíssimas! É incrível a semelhança da situação da Bruzundanga daquela época com o Brasil atual. Vale a pena ler e se inteirar. Sem falar que a ironia no texto é daquelas finíssimas, que só mesmo grandes escritores são capazes de gerar.

Boa leitura!