Por Victor
Eustáquio
Havia uma espécie
de neblina. Ou talvez névoa. Na verdade, qualquer coisa onírica a
obscurecer-lhe a capacidade de olhar, e de ver, e de perceber o tino dos seus
passos à medida que se dirigia para o púlpito, enorme, bem mais alto do que
ele, lá ao fundo, no final do tapete vermelho que cobria aquela clareira aberta
no meio da multidão, dividindo-a simetricamente, de um lado e do outro, gente
sentada num sem-número de cadeiras enfileiradas na horizontal, que o seu
caminho fazia-se na vertical, a direito, sempre em frente, em busca do lugar
sagrado no qual estava prestes a discursar em público pela primeira vez na
vida.
Sentia os braços
retesados, tensos, demasiado vergados à rigidez ditada pelo peso de algo que
afinal não podia ser assim tão pesado. Mas que doía. O fardo de uma
responsabilidade imposta precocemente; a de comunicar e de saber comunicar
perante tantas pessoas, com apenas seis anos de idade, o que havia rabiscado em
duas folhas de papel que levava dobradas na mão esquerda, enquanto apertava com
a direita uma bolsa preta de fecho, acolchoada, com um pequeno livro enfiado lá
dentro. A Bíblia, os textos sagrados remetidos para uma vulgar cópia impressa
em edição de bolso, ostensivamente protegida por aquele saquinho de pele.
Miguel gostava de
imaginar que o seu livro era feito de folhas de palmeira cozidas em leite,
escritas com instrumentos pontiagudos, como ainda hoje fazem no Nepal e no
Tibete, tão povoado que estava o seu imaginário dessas errâncias remotas de que
versavam as escrituras. Ou de madeira encerada, com as páginas costuradas, como
faziam os Romanos, ainda antes dos rolos de papiro dos egípcios. Ou de páginas
feitas com pele de carneiro, cabra ou ovelha, os célebres pergaminhos da antiga
Grécia. Mas os escribas e copistas há muito que haviam desaparecido, não
obstante aquele maço de folhas encadernadas, impressas em série, nos dias
modernos, continuar a evocar o Apocalipse e os tempos do fim ou o fim dos
tempos, que nisso não eram muito claros, os textos sagrados, bem entendido,
pelo menos para ele, criança de fato e gravata feitos à medida, à falta de
medidas para tão pouca carne, em altura e em largura, embora os pecados não se
dessem por vencidos e tanto eram aplicáveis aos seis como aos sessenta, e a
todas e quaisquer outras idades, desde que a fé fosse uma obrigação. Em
consciência, aceite porque assim devia ser, ou à letra, quer dizer, obrigada.
E, contudo, era
disso que Miguel ia falar. De outras eras, dos dias envelhecidos pelas pelejas
da antiguidade, das vozes escolhidas para interpretar deixas celestiais, em
época de escribas e copistas, entre hebreus e árabes, entre os semitas e os
outros, persas e fenícios, até que as tribos se cristianizaram e o mundo se
dividiu. Para localizar a união de poucos e a desunião de muitos.
Foi necessário
baixar o microfone até ao limite do tripé metálico para que o rapaz lá
chegasse, para se fazer ouvir e convencer-se de que podia fingir ser já um
homem. Assim lho tinham feito crer em nome de Deus, que aos seis anos o privilégio
era só para alguns, orar para uma congregação inteira com os olhos postos nele,
que alegria e orgulho, de pequenino se torce o pepino, o futuro, esse,
evidentemente que seria grandioso, mesmo terreno, até que o fim chegasse sob a
forma de uma destruição maciça, qual dilúvio qual quê, bem pior do que Sodoma e
Gomorra, e a todos levasse para o paraíso.
Quando ficou tudo
a jeito e lhe deram sinais nesse sentido, a criança abriu o livro protegido
pela pequena bolsa de pele que apertava com a mão direita e depositou-o em cima
do tampo de acrílico do púlpito com as páginas abertas, separadas por uma fita
vermelha. De seguida, desdobrou as folhas de papel que conheceram um destino
idêntico, com as mãos a tremer, e olhou para a plateia de fiéis. Um quadro embaciado,
distante de Miguel, porque continuava a haver aquela espécie de neblina que lhe
turvava a vista. Tentou começar a ler, mas a voz não saiu. Ouvia-se apenas o
som amplificado de uma respiração apressada, ainda que não muito audível na
justa proporção da tão diminuta caixa torácica escondida pelo fato e a gravata.
O rapaz tinha o cabelo curto, penteado severamente com a risca ao lado, e uma
borbulha cheia de pus e encarniçada encostada à narina direita.
— A Terra não
será destruída nem por fogo nem por qualquer outro meio — acabou Miguel por
conseguir verbalizar, lentamente, com a voz insegura e quase imperceptível, a
arrastar as palavras com um timbre fino, próprio da idade. — A Bíblia ensina
que a Terra é o lar eterno da Humanidade.
A tribuna de
madeira e o microfone, mesmo rebaixado até ao limite, tapavam o rapaz quase por
completo, o que, em boa verdade, até lhe dava uma certa sensação de conforto no
meio daquele reboliço de ansiedade e outras aflições de espírito.
— Depois de criar
nosso planeta, Deus disse que ele era muito bom — prosseguiu Miguel, tão
titubeante quanto monocórdico. — E Deus ainda pensa assim. Ele não vai destruir
a Terra, mas promete que vai arr… arruna… arruinar os que a arru… arrrunaram e
progê….protegê-la contra danos permanentes — acrescentou, a tropeçar nalgumas
palavras.
A sala
mantinha-se em silêncio, expectante, com alguns espectadores a dar sinais de
aprovação através de um sorriso suave e cúmplice desenhado nos seus rostos.
Miguel agarrou na
Bíblia e preparou-se para continuar a ler.
— João 2:17 —
indicou, levando a que todos o seguissem com as suas respectivas cópias
impressas em série, folhas de papel compostas por elementos fibrosos de origem
vegetal, na prática celulose, sem quaisquer vestígios de pele de carneiro,
cabra ou ovelha. — O Mundo está passando, e assim também o seu desejo, mas
aquele que faz a vontade de Deus perna… nece para sempre — citou, concluindo a
intervenção, a que se seguiu uma salva de palmas.
Uma ovação
entusiástica feita de pé perante o regozijo do rapaz, também ele agora com um
sorriso estampado na cara. Miguel arrumou as suas coisas e abandonou a tribuna,
fazendo o mesmo caminho inversamente, com o pequeno livro acolchoado na mão
direita e as folhas de papel na esquerda, a mão com que o Diabo come, mão
impura e amaldiçoada, sendo o demo canhoto e um arauto obstinado dos rituais
esquerdinos.
Foi com a mesma
mão, a esquerda, claro está, que dois anos depois, Miguel, o arcanjo Miguel,
escavou um pequeno buraco na terra, no lamaçal de um parque de diversões, com
os joelhos no chão, debruçado sobre uma poça de água que reflectia os néones
multicolores dos carrosséis. Tinha os dedos encardidos e os cabelos molhados.
Os olhos castanhos brilhavam-lhe de excitação, à medida que da boca saía uma
canção de embalar, cantada toscamente e fora de tom. Quando sentiu que estava
tudo pronto, tirou um pequeno frasco de vidro do bolso do impermeável
azul-escuro, que lhe aconchegava o peito, abriu a tampa e agarrou numa mosca.
Com cuidado, para não lhe esmagar o corpo. O insecto não se mexia e se alguém
pudesse vê-lo mais de perto repararia estupefacto que estava desasado. A
criança depositou-o no buraco e ficou a observá-lo por momentos, inerte,
naquela cova úmida e enlameada. De seguida, Miguel começou a empurrar o montículo
de terra para o buraco, para cima da mosca, tapando-a, soterrando-a. No fim,
tentou alisar com a mão direita, a pura, a que conservava ainda imaculada, até
descobrir mais tarde a tormenta dos prazeres solitários, aquela superfície
revolvida, primeiro com um movimento horizontal, depois com um vertical, como
se fosse um sinal da cruz imaginário. Por fim, agarrou em dois fósforos,
cruzou-os e atou-os com um bocado de cordel que tinha no bolso das calças.
Quando terminou a tarefa, enterrou a pequena cruz na terra, mesmo por cima do
sítio onde havia sepultado a mosca. E sorriu. Com os joelhos afundados no
lodaçal e a cabeça à chuva. Um sorriso enigmático no qual se adivinhava tanto
inocência como deslumbramento e malícia. À volta dele, brilhavam as luzes dos
carrosséis e soavam e os gritos inebriados das crianças, com as suas mentes
inquietas enlevadas por aquela festa estridente ao ritmo de uma cacofonia
musical vinda dos quatro cantos do parque, o que não era rigorosamente verdade
pois a Terra não se apresenta na forma quadrilátera nem é plana ou chata,
venham lá as desavenças gravitacionais e as cisões eclesiásticas, que o
adultério aristotélico e a abolição geocêntrica já não faziam parte daquele
tempo.
Foi uma das
últimas recordações que levara da cidade, quer dizer, da periferia da cidade e
do bairro de lata em que havia vivido para aquele lugarejo perdido a norte da
capital, onde Miguel prosseguiu os estudos pela televisão, em tempos de
telescola, sob a condução de um padre, coisa estranha para os pais, que eram de
outros credos.
Quando decidiu
abandonar a fé, quer dizer, fazer tudo para ser expulso, o ancião dissera-lhe
que assim não podia ser ou parava de se masturbar ou não entrava no reino dos
céus e já agora no que pensas quando o fazes, como assim irmão, com quem
imaginas estar, ah isso é mais complicado irmão, mas de Deus nada deves
esconder, está bem, então quem é, a sua filha, porra a minha filha, sim, de
treze anos, qual é o problema tenho quinze seria pior se imaginasse estar com
uma mulher mais velha a sua mulher por exemplo irmão, cala-te seu pecador
pareces um fornicador endiabrado já fornicaste, fornicar não mas até gostava e
com a sua filha, e tu a dares-lhe com ela, se calhar o irmão preferia que fosse
a sua mulher pelo menos não penso em homens, cala-te lá nem homens nem a minha
mulher nem a minha filha que a rapariga é de bons costumes e tu jamais lhe
porás as mãos ou qualquer outra coisa que daqui terás de sair banido para
sempre pois arrependimento não parece ser dádiva tua pelo que não há perdão nem
emenda.
E não houve.
Mas a mãe tentou
suicidar-se. Naquele lugarejo perdido a trocar as coordenadas do epicentro da
existência. Que vergonha e aflição, o único filho condenado para a eternidade,
mais valia morrer, mesmo correndo o risco de não chegar a ver o fim do mundo, e
lá foi parar ao hospital para uma lavagem ao estômago, encardido de químicos, a
segunda tentativa ainda tardaria algum tempo, mas dessa vez não havia sido bem
por querer, acontecera-lhe andar com o colesterol fora da linha, e perdeu os
sentidos, ao abrir a porta de casa ao filho e cair-lhe nos braços, já ele
pensava em ataque cardíaco, ou em qualquer outra patologia, se calhar o mal
estava na cabeça.
E estava mesmo.
À terceira, a mãe
morreu. Até porque é a conta que Deus fez. Não por suicídio, mas por doença. Um
acidente cerebral fulminante. Afinal, a Bíblia estava enganada, como percebeu
Miguel nove anos depois de fingir que já era homem ao subir pela primeira vez
àquela tribuna para falar de outras eras; definitivamente a Terra não é o lar
eterno da Humanidade. Mas numa coisa os textos sagrados tinham razão, embora
não estivesse explícito naquele livro protegido pela pequena bolsa de pele:
Deus não vai destruir a Terra; apenas destrói todos os que criou à sua imagem.
VICTOR EUSTÁQUIO
é docente do ensino superior nas áreas da Ciência Política e Relações
Internacionais e investigador em sede de programa de doutoramento em Estudos
Africanos, em Lisboa. É autor dos romances «O Carrossel de Lúcifer» (2008),
publicado em Portugal pela Bertrand Editora, e «A Cidade dos Sete Mares»
(2013), que permanece inédito. Está representado na antologia de contos
«Catarse», com o texto «O Veneno de Sócrates», a publicar este ano no Brasil
pela editora Deuses.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor.
Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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