Por Marilise
Batista
Naquela fria
noite de Madrid, o senhor Juan Carlos era o único corpo caminhando pelo escuro
e estreito beco de paralelepípedos. Sendo muito tarde, ainda assim lhe parecia
imprescindível voltar a seu atelier para revisar aquela encomenda tão especial
antes do amanhecer.
Apesar da
nostalgia do Mar Mediterrâneo, a saudade do sabor indescritível do grão-de-bico
cozido ao estilo de Andaluzia e de alguns latejantes calos em ambas as mãos,
ele tinha se instalado naquela cidade das oportunidades porque todos os meses
uma miserável aposentadoria se apoiava em suas costas e juntos se alimentavam
de um prato de lentilhas.
Dizia-se que Juan
Carlos havia sido parido pelas mãos da bisavó entremeio de violões. Sua
intimidade com a madeira e o aguçado ouvido para os instrumentos musicais foram
transpassados naturalmente pelo bisavô paterno.
Em todos os
cantos das províncias de Andaluzia todos comentavam que os homens da família
Castillo fertilizavam os futuros luthiers da Espanha. Por causa dessa fama,
sempre havia um cochicho na hora da missa onde se comentava que as esposas dos
Castillos pediam bendições ao padre para que Deus lhes mandasse fortes filhos varões. Elas desejavam ser
reverenciadas pelos maridos pela boa procriação e perpetuação do sangue dos
excelsos artesãos.
O senhor Juan
Carlos entrou no atelier, acendeu as luzes e caminhou em direção à mesa
principal. Naquele lugar as prateleiras estavam repletas de ferramentas,
máquinas, esqueletos de violões e um sugestivo olor a pó de serragem.
Depois de
quarenta anos dedicando-se ao mesmo ofício, ele se reconhecia como um artesão
experimentado na arte da lutheria, mas pela primeira vez sentia uma leve dor no
estômago.
Fazia um mês que
havia recebido um pedido para a elaboração de um violão que estaria destinado a
um famoso violinista flamenco. Sua intuição lhe advertia que aquele músico não
somente se preocuparia da qualidade dos cedros, abetos ou ciprestes
selecionados como matéria prima, mas que a ele lhe importaria comprovar se
seria cumprido o desafio de transformar paus de madeira maciça em sensações e
emoções da alma cigana.
Depois de uma
extensa revisão do apreciado violão lhe pareceu que tudo estava em perfeitas
condições. Mas a ultima palavra seria a opinião de seu refinado e exigente cliente.
Cansado e
padecendo de dor nas costas sentou-se numa cadeira para descansar os ossos. De
súbito deu um salto assustando-se com três fortes batidas na porta do atelier.
Sem se mover viu como a porta rangia abrindo-se bem devagar. Com passos
seguros, firmes e precisos entrou o mesmíssimo violinista de flamenco, o senhor
Miguel Ramirez.
Miguel Ramirez,
camisa de seda branca, era um desses homenzarrões que caminham pela vida
sussurrando um espanhol cigano ao ouvido de mulheres de camas alheias. Com seus
negros cabelos longos era um tipo agradável à vista, e até seus rivais do mesmo
gênero encontravam-no desgraçadamente um imbatível sedutor.
Fixamente sem
pestanejar, Miguel Ramirez encarou profundamente os olhos do artesão. Sequer o
cumprimentou, pois homens como ele somente ocupavam a boca para os murmúrios da
língua romanês e seus ouvidos para o lamento de um violão cigano.
Ramirez não
entrou caminhando, mas sim deslizando pelo atelier e arrastando com seus
sapatos de tacos o pó de serragem das árduas semanas de trabalho. O senhor Juan
Carlos tampouco quis lhe dizer nada e, com um tímido gesto com o dedo
indicador, lhe apontou seu violão para que ele pudesse verificar a qualidade do
trabalho executado.
Fechando os olhos
o violinista abraçou delicadamente o instrumento constituindo-se num casamento
monogâmico. Com as pontas dos dedos o acariciava como se fosse o corpo de uma
bela donzela perfumada de tulipas. Aquele olor da madeira o levou ao mais puro
estado de êxtase e inspiração musical. Imediatamente Ramirez começou com um
rasqueado flamenco.
Juan Carlos,
sentado e emudecido, desfrutava daquele momento constatando que a matéria
orgânica finalmente alcançava sua plenitude artística nos dedos daquele grande
músico.
De repente as
luzes se apagaram, o atelier se escureceu e apenas a lâmpada que estava no teto
em cima do guitarrista continuou iluminando a sala. E em lapsos de segundos
tudo se transformou num palco de algum pequeno teatro de Madrid.
Frente aos olhos
do artesão, que escutava a paixão e a intensidade da música cigana, apareceu
uma bailarina de olhar esquivo, castanholas nas mãos, vestido vermelho e flores
nos cabelos. Ao outro lado do tablado se ouvia o canto nostálgico e o toque de
dedos e palmas no compasso de três tempos realizado pelos músicos que sempre
eram seus acompanhantes nas apresentações. O sapateado flamenco, ah!, como não
tê-lo ali mesmo se o chão do atelier era feito da mais pura madeira européia.
Música! Canto!
Dança! Palmas! Sapateado! Castanholas... OLÉ!!!
Quando Miguel
Ramirez deixou de tocar o violão, Juan Carlos presenciou como misteriosamente
todas as luzes do atelier voltaram a acender. O artesão olhou para os lados e
teve que se convencer de que naquele lugar não havia mais ninguém além do
músico e sua própria existência.
Miguel Ramirez
lhe sorriu. Era um sinal claro de que o instrumento estava esplendido,
inigualável, magnífico e sublime.
— Quanto lhe
devo?
— Nada, senhor
Ramirez, nada. Leve-o, por favor.
Ramirez guardou a
relíquia no case e saiu pela porta sem se despedir.
A luz do sol que
entrava pela janela acordou Juan Carlos. Tanto tinha sido o cansaço e o sono
que o pobre artesão não se deu conta de que tinha passado a noite sentado na
cadeira. Levantou-se e olhando-se no pequeno espelho pendurado na parede
esfregou os olhos com as mãos. Estava sedento por uma xícara de café com leite.
Continuava
cansado e padecendo de dor nas costas. Voltou a sentar-se na cadeira para
descansar os ossos. De súbito deu um salto assustando-se com três fortes
batidas na porta do atelier.

MARILISE BATISTA
é paulista, pedagoga pela PUC-SP, radicada no Chile. A autora assume que seus
textos são impregnados de um dramatismo e uma linguagem mais familiares à
cultura hispânica. Por se sentir cômoda dentro desse estilo na composição de
seus contos, sendo brasileira, surpreendeu uma banca examinadora e ganhou um
prêmio num concurso literário no Chile com o Conto «Bendiciones de Julia».
Reconhece que sua vertente na língua portuguesa se reflete melhor na literatura
infantil. Na elaboração dos contos infantis constrói personagens minuciosamente
estudados dentro de aspectos psicológicos bem delineados, cuja moral ou a
mensagem implícita não se esgota no final do texto. Seu conto infantil «O
Grande Talento de Lázaro» foi publicado na Revista Viverde, «João Rabugento, o
Ladrão de Pipas» faz parte do projeto Formadores do Saber pela Fundação Santo
André, e «Os Pezinhos de Sofia» está na Antologia Infantil Historias Para Você
Dormir 2, pela editora Valladares.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados à autora. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
Belíssimo conto.Leitura instigante.
ResponderExcluirEscreves com muita propriedade! Belo conto!
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