Por Ana Bailune
Os dedos finos da
chuva tamborilavam no parapeito da janela, dizendo: “Lembre! Lembre!” Ela
olhava para fora, e já não sabia se enxergava a chuva no vidro, ou se eram suas
próprias lágrimas. Aconchegou-se ao cachecol. Fungou.
Mais um dia.
Suspiro.
Ainda de
camisola, foi lá para fora, para a vida, fazer aquilo que todos esperavam dela:
viver. Ou algo assim. Preparou o café em transe, despediu-se do filho, que saiu
para a faculdade, beijou o marido sem nem sequer vê-lo direito. Ele dissera algo;
o que, meu Deus? Não importava. Aprendera a olhar as pessoas, ver seus lábios
se mexendo, sorrir levemente e acenar com a cabeça. Mas o que eles diziam? Não
tinha a menor importância. Sabia que, quando alguém afagava seu ombro — o que
doía —, tinha que dizer “Obrigada.”
Às vezes, quando
estava um pouco mais alerta, escutava-os dizendo: “Já fazem dois anos...” mas
por que o tempo só não passava para ela?
Achava cruel, a
maneira como as pessoas se aproximavam sorrindo, perguntando (quase afirmando)
se estava tudo bem, e antes que ela respondesse, iam passando, pois na verdade,
não estavam interessados na resposta; ninguém queria ouvir a ladainha de uma
pessoa enlutada. Queriam — exigiam — que ela estivesse bem.
Lavou as xícaras,
secou-as e guardou-as no armário. Também desfez a mesa do café — sem ter comido
quase nada; apenas brincava com os alimentos, enfiando alguma coisa na boca,
para que não fosse obrigada a ouvir as mesmas ladainhas: “Você precisa comer,
você precisa reagir, você precisa sair mais...”
Você precisa.
Pegou a caixa com
as fotografias, como sempre fazia, e sentou-se na cama, espalhando-as sobre a
colcha gasta. Lá estava ela, sorrindo, entre as amigas; e a primeira comunhão.
O aniversário de nove anos, o de doze, o de vinte. A foto de formatura. Os
sorrisos congelados para sempre, a imagem de uma menina feliz e morta.
Morta.
A realidade doía.
Guardou as fotos
e foi às compras no supermercado.
A manhã estava
morna e cinzenta. Parecia que nunca mais ninguém veria o céu azul, ou que ele
fosse apenas uma lenda. A chuva havia passado, mas no chão, poças de água de
todos os tamanhos. Encontrou um vizinho, que acenou para ela alegremente, e ela
automaticamente, acenou de volta. Passou, seguiu.
Chegou em casa
com as compras e começou a preparar o almoço. A irmã ficara de passar para
almoçar com ela. Pôs a carne no forno, começou a picar os legumes. De repente,
entrou em um transe. O tiquetaque do relógio na parede acima da pia parecia ter
o poder de hipnotizá-la, levando-a de volta ao passado, quando a menina vivia.
E escutava os ecos de seus risos pela casa, a voz dela pedindo: “Mãe, passa a
minha blusa azul?” E lembrou-se de quando ralhava com ela, por deixar tudo para
a última hora: “Por que não pediu ontem, filha?”
E agora, voltando
aos legumes picados — após um pequeno talho no dedo, que foi lavar sob a
torneira da pia — ela só pensava que gostaria de ficar o resto da vida passando
todas aquelas blusas azuis, verdes, amarelas, brancas... se isso fosse trazê-la
de volta por apenas um ou dois minutos que fossem!
Jogou os legumes
na caçarola, pôs o sal, refogou, jogou água. Olhou a carne no forno. Olhou o
arroz, enxugou as mãos no avental. Recostou-se contra a pia, olhou a cozinha
embaçada pelo vapor das panelas. Abriu a porta, mas a luz que vinha lá de fora,
apesar do tempo cinzento, e os gritos das crianças brincando, era vida demais
para ela. Fechou a porta.
Olhou para o
corredor. Escuro. Vazio. Nunca mais ela passaria por ele apressada, para
dar-lhe um beijo antes de ir. Nunca mais. Esta era a sua frase, a frase que
representava todas as expectativas que pudesse ter sobre a vida: “Nunca Mais.”
A distância que
se fizera entre ela e o marido estava cada vez mais se esticando, e ela sabia
que a hora em que aquele elástico absurdamente longo se partiria, estava
chegando. Ele iria embora. Aliás, já tinha ido; só o corpo dele estava por ali,
vagando. Às vezes pensava o que sentiria se ele morresse. Choraria? Será que
acordaria? Sentiria falta dele? Não sabia que ele pensava exatamente a mesma
coisa, e se fazia as mesmas perguntas. E depois que ele fosse embora, e o filho
finalmente se mudasse — estava procurando apartamento — o que ela faria?
Já passava dos
quarenta. Estava fora do mercado de trabalho há muito tempo. Passara a
juventude cuidando dos filhos, da casa, do marido. Nunca fizera mal a ninguém
na vida! Nunca, nem uma vez, desejara mal a qualquer criatura viva, e sempre
que podia, recolhia animais abandonados na rua e ajudava-os a encontrar um
dono. Diziam que ela era boa.
Então, por que?!
Lembrou-se do dia
do velório, quando uma senhora que nem sequer conhecia, aproximou-se dela e
disse: “Deus quis assim!” A partir daquele momento, ela passou a odiar Deus.
Até mesmo sua querida santinha, a quem tinha sido sempre tão devota, passou a
ser encarada como uma inimiga. Só não jogara a imagem fora porque tinha sido
presente de sua mãe, que trouxera para ela de uma viagem que tinha feito a
Fátima.
E todos diziam
que ela tinha que se apegar a alguma coisa; precisava ter fé! Ora, fé ela
tivera, durante todo o período da doença da filha! Tinha feito promessas e mais
promessas, rezado missas, feito novenas. Nunca tinha sido tão carola, a fé
brotando por entre seus dedos, despejando-se dos seus olhos, saindo-lhe pelos
poros enquanto afagava a cabeça da filha no leito de hospital, dizendo a ela
que iria ficar boa, que iria curar-se. E ela realmente acreditou na cura! Mas
sua santinha havia praticado a maior das traições: levou sua menina! Levou sua
menina, por pura inveja, porque seu Filho também tinha sido levado! E por causa
disso, ela agora odiava todas as mães, e levava-lhes os filhos! Era como uma
cínica serial killer de véu branco.
Seus pensamentos
foram interrompidos pelo toque da campainha. Abriu a porta para a irmã, que a
abraçou, trazendo a vida lá de fora. Cheirava à chuva fresca e fumaça dos
carros. Era vida demais, e ela encolheu-se dentro dos braços da irmã, para
tentar evitar ao máximo o toque daquele corpo. A irmã, ao olhá-la novamente,
comentou:
— Que tempo! Já
começou a chover de novo!
Ela pegou a bolsa
da irmã, pendurando-a no cabide do corredor. Sorriu, seu sorriso leve e casual.
A irmã sentou-se à mesa da cozinha, dizendo:
— Você está bem
melhor hoje, querida. Parece bem melhor!
Ela sorriu
novamente, concordando com a cabeça. Era isso que esperavam dela.
ANA BAILUNE é
petropolitana e publica seus contos, crônicas, poemas, resenhas e artigos em
seus sites e blogs na internet. É assinante do site Recanto das Letras. Tem um
livro de poemas publicado — «Vai Ficar Tudo Bem (2012, Pimenta Malagueta)» —,
participou como autora convidada no primeiro volume da Série «15 Poemas+,
(quintextos.blogspot.com)» e tem
participações em várias antologias, como «Gandavos» I e II
(gandavos.blogspot.com), «15 Contos+ Volume I» (quinzecontosmais.blogspot.com)
e «Traços e Compassos (2013, Pimenta Malagueta)». Atualmente, prepara um livro
de contos.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados à autora. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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