quinta-feira, 15 de agosto de 2013

ATÉ AS GALINHAS SABIAM...



Por Aleki Zalex

Sô Joaquim Ambrósio nasceu, cresceu, casou, teve filhos, netos, e nunca transpôs os limites da pequena Vila das Quaresmeiras; passou toda sua benfazeja vida em seu torrão natal, cultivando simpatia e cativando amigos.
Levantava bem cedo e atrelava o balaio ao burrico General, amigo fiel, transportador oficial de sua preciosa mercadoria, constituída toda ela de algodão doce, cocada, pé-de-moleque e bala de bico. Saía com o sol, fazendo soar sua esganiçada buzina por quanta sorte de vielas possuía o povoado, do qual já conhecia cada um dos paralelepípedos tortuosamente assentados pela benemérita administração municipal, cuja benemerência, a bem da verdade, a grande maioria dos moradores botavam em questão, nas acaloradas conversas nos botecos ou em furtivos sussurros pelos becos convergentes. Politicagens à parte, Sô Joaquim Ambrósio não falava mal do prefeito nem das suas polêmicas obras públicas, que afinal de contas, dizia, ele mesmo ajudara a sentar o homem na cadeira da prefeitura. Margeava essas sortes de assuntos, mantendo-se impassível aos fuxicos e futricas do povo, preocupando-se antes em anunciar, algumas vezes em cantoria arrastada, outras aos berros, suas doces preciosidades:
— ’Aúúú argudão doci! Baianinha brancaaaaaaa! Baianinha morenaaaaa! Péééééé di mulequi docinhuuuuu! Bala di biiiiiiiicu, gostosa i vremeinha!’
A meninada acorria em grita cheia e farta balbúrdia ao toque de sua buzina, com tão incontida ansiedade, que os irmãos Griim chegavam a remexer os ossos nas tumbas, ardendo de despeito ao saberem a flauta mágica do famigerado Flautista de Hamelim, relegada ao segundo patamar do pódio na apuradíssima predileção auditiva da petizada.
 O dinheiro que auferia com a venda das guloseimas era mais que suficiente para complementar o sustento da família (a esposa e cinco netinhos que criava, enquanto os filhos tentavam a vida na capital), pois o grosso dos gastos saía de sua aposentadoria como lavrador, profissão que exerceu por trinta e oito anos consecutivos, com infalível frequência diária. Só continuava a trabalhar com a venda dos doces, porque, como ele próprio ventilava, não sem certo tantinho de desprezo na voz, ‘num era homi dadu a passá u dia di pijama i chinela, estorvanu a lida da patroa i si atrupelanu cus mininu i cus cachorru pela casa, i muintu menu ainda, apriciava di ficá joganu dama cuá cacaria disocupada na pracinha da igreja’.
 Enfim, Sô Joaquim Ambrósio era um homem bonachão, simpático, e o retrato genuíno de um caipira feliz e realizado em seus parcos anseios. Sua alegria nata lhe agraciara com a felicidade de contar com a estima de todo o povoado. Não obstante, viviam debochando, pelas costas, é claro, de seu eterno espírito nômade. Longe de seus olhos (e ouvidos), citavam-no como Sô Joaquim Cigano, alcunha que, muito embora não conhecesse e jamais granjeara, adquirira sem o saber, por ter o hábito, jamais esclarecido se por necessidade ou mera mania, de mudar-se frequentemente de morada.
Dona Candoca, assim que entrava numa nova moradia, sabia de antemão que não conseguiria colocar todos os apetrechos em ordem antes que o marido chegasse num belo e ensolarado dia, sempre pelo terreiro da cozinha, arrastando as botinas no seu passo de catitu fora da manada, interrompendo o sagrado ciscar das galinhas que cacarejavam esbaforidas, e anunciasse solenemente a já velha e conhecida boa nova:
— ‘Candoca, meu ôro, avia di ajuntá as trôxa nu perpassu da semana qui nóis muda nu dumingu’.
Dona Candoca suspirava, conformada. E dá-lhe uma semana inteira ajuntando tralhas daqui e badulaques dali, e amarrando trouxas de cá, e buscando lata de flor dacolá, entre o preparo do almoço pela manhã, o despacho dos meninos para a escola ao meio do dia, e a lida no tanque à tarde. Nessas ocasiões de mudança, Sô Joaquim Ambrósio voltava da praça e entregava à esposa a féria toda do dia, que ela guardava no bule de louça da cristaleira. Esse dinheiro serviria para o custeio do também habitual almoço de comemoração da ‘casa nova’, que, invariavelmente, era um casarão antigo e caindo aos pedaços.
E assim vivia feliz e alheio ao girar do orbe, o pacato Sô Joaquim Ambrósio, casado com Dona Cândida Silveira Ambrósio, pai de quatro filhos e avô de cinco netos, aposentado, lavrador de profissão, e vendedor de gostosuras por ofício.
Se os mexericos do povo a respeito de sua alma nômade eram exagerados, não se sabe ao certo, porém, fato é que Sô Joaquim Ambrósio, que não dava lá muita bola às artimanhas do inexplicável, jamais contou a alguém que a cada domingo que sucedia a anunciada mudança, quando pulava da cama e rumava para a bica na finalidade de lavar o rosto, topava as galinhas no terreiro, já todas apeadas do poleiro, deitadas com as costas no chão, e com os pezinhos juntinhos e voltados para cima...

ALEKI ZALEX nasceu em 1961 no Rio de Janeiro, RJ, mora atualmente em Manhuaçu, MG. Estudou na Fundação Universidade Mineira de Artes (FUMA), cursando Comunicação Visual, e na Escola Guignard/UEMG, onde cursou Artes Plásticas. É escritor amador, e suas incursões no mundo das Letras tendem mais para a poesia, tendo porém escrito alguns contos e crônicas, alguns destes publicados em revistas locais.




Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

Um comentário:

  1. Sou fã do Aleki no Recanto das Letras. Gosto de tudo o que ele escreve. Parabéns amigo pelo conto... demais da conta de bom de ler, sô :-)

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