Por Maurem Kayna
Quando começaram
a namorar, ela se sentia envaidecida com o olhar atento de Humberto. Gabava-se
com as amigas, e algumas chegavam a invejar a paixão do rapaz. Afinal, ela nem
era assim tão bonita para inspirar tamanho cuidado. O interesse dele não
diminuiu com o tempo, ao contrário, Humberto tornava-se a cada dia mais
aplicado, acompanhando-a em todos os programas, apresentara-se à família dela e
conquistara a simpatia dos pais com seu comportamento um pouco à moda antiga.
Esforçava-se para levar a namorada à faculdade, mesmo que isso significasse
algum atraso para o trabalho — contava a seu favor ter o pai como empregador.
Agora, o olhar e a presença constante de Humberto alimentam mais desconforto
que vaidade, mas ela não divide isso nem com a amiga mais chegada.
Hoje, vendo que
já não havia sinais do hematoma no braço e sabendo que ele não poderia levá-la,
porque era o dia da semana com maior movimento na oficina, ela foi à aula com
uma blusa mais leve, nada muito ousado, mas Humberto a esperava na saída e mal
ela entrou no carro veio a inquisição, com voz mansa: porque estava usando
aquela roupa tão provocativa justo no dia em que ele não poderia protegê-la?
Tentando não gaguejar nem demonstrar fraqueza, fez ares de impaciência e
defendeu a inocência das vestes, mas mal sumiu o som da fala sob o barulho do
rádio ela sentiu o estômago contraído e as palmas das mãos umedecendo. Falando
baixo, em tom carinhoso, Humberto lhe pediu que ligasse para casa, avisando que
almoçariam juntos e que, em seguida, ela faria um trabalho da faculdade na casa
de uma amiga, mas que chegaria em casa antes das oito. Ela resistiu, pois já
tinha prometido à mãe almoçar em casa para agradar a avó que estava passando
uns dias com a família. Então almoçarei lá, determinou, e depois lhe darei
carona até a casa da sua colega para vocês fazerem o tal trabalho da faculdade,
concluiu sem dar margem à discussão.
Vendo-se sem
alternativas, ela ligou para a mãe, que prontamente colocou um lugar extra na
mesa. Humberto era sempre bem-vindo por conta do sorriso contagiante e da
gentileza com todos da casa. Procurou agradar também à avó e até se distraiu um
pouco enquanto conversava com a anciã — o suficiente para que a namorada
pudesse ir ao banheiro com o celular no bolso.
Sua amiga mais
próxima sentia-se atraída por Humberto. No começo, ficara magoada, mas há algum
tempo começara a ver nesse interesse uma chance. Já havia feito sugestões pouco
explícitas para que se aproximasse de Humberto e até insinuara disposição para
uma aventura erótica, onde haveria espaço para ela. Não tinha um plano claro,
mas esperava que Humberto correspondesse às investidas da outra e a deixasse de
lado. No banheiro, aproveitou a curta interrupção da vigilância e enviou uma
mensagem categórica para a amiga, confirmando o endereço do namorado e dizendo
o horário e a roupa que deveria usar.
Serviram a
sobremesa assim que ela voltou à mesa, e Humberto atravessou-a com olhar
desconfiado. Ela gelou, mas já aprendera a se dominar. Enquanto todos comiam
pudim de leite, ele aproveitou a animação à mesa para recolher o telefone do
bolso dela, mas não encontrou qualquer vestígio que gerasse desconfianças, pois
ela se tornara meticulosa. Ainda cismado, mas sem levantar suspeitas, ele
perguntou se ela não estava atrasada para o trabalho na casa da colega.
Não trocaram uma
palavra sequer no percurso até o apartamento dele. No elevador, já visivelmente
irritado, ele se aproximou e, segurando com força desnecessária seus cabelos,
cochichou a sentença: por que você me provocou assim hoje, docinho?
A porta se abriu
no quinto andar. Uma moradora desculpou-se, achando que interrompia
preliminares de uma tarde quente. Ele sorriu ruborizado, como um rapaz
bem-educado pego em uma travessura, e abraçou a namorada. Ela esboçou um quase
sorriso de criança obediente.
Ao entrarem no
apartamento, ela tentou abrir as cortinas da sala, mas Humberto a interrompeu
com mãos firmes. Imobilizada e apreensiva, ela desabou. Não quero que você
chore, foi a única coisa que disse enquanto a arrastava para o quarto.
Trancada no
cômodo com vista para o paredão do prédio vizinho, sem saber quanto tempo ele
levaria para voltar ou quais eram as suas intenções, teve medo que sua aposta
falhasse. Mas só podia esperar e ficar atenta aos ruídos na cozinha, sem saber
se Humberto apenas jogava com seu medo ou se algo inédito viria. Tinha vontade
de desabafar e pedir auxílio à família, mas ele havia tomado seu telefone antes
de chaveá-la na alcova escura.
A fechadura
emitiu um som. Teria valido o risco fazer uma cópia da chave sem que ele
percebesse e entregá-la à amiga? Torcia para que ela estivesse vestida para
impressionar, que ele se deixasse seduzir, que ninguém se machucasse e que ela
pudesse voltar a se mover sem sentir-se observada o tempo todo. Sentou-se na
cama, alerta, ensaiando uma coragem inexistente.
A porta se abriu
num rompante e Camila mantinha-se muda porque a mão de Humberto fechava sua
boca e nariz. Os olhos arregalados procuravam uma explicação no rosto assustado
da amiga. Ele, com voz baixa, exigia uma explicação e, diante da gagueira da
namorada, voltou os olhos insanos para a outra moça, que tremia sob sua força.
Determinou que não gritassem ou se arrependeriam e arremessou Camila sobre a
cama. Abraçaram-se as duas, mas apenas uma chorava; a outra, acostumada aos sustos,
estava seca.
Humberto segurava
uma faca. Não desejo usá-la, disse, mas uma delas sabia o que vinha depois de
uma voz chorosa, mesmo ele dizendo não querer fazer algo ruim. O pavor repetido
se fazia raiva e cálculo. Apostando que a surpresa impedira ambos de chavear a
porta, ela jogou Camila sobre Humberto e correu com todo o medo acumulado nos
últimos meses. Desceu a escadaria e ficou aliviada ao não ver o porteiro em seu
posto.
Em casa, disse
que o trabalho tinha sido concluído antes do previsto e foi passar o resto da
tarde com a avó. Falaram de infância e de receitas antigas. Sobre o namorado
ela não quis conversar, retrucando não terem nada mais sério quando a avó quis
saber sobre a origem daquele moço tão esforçado em ser simpático. A visita da avó
a livrou do medo noturno, conversaram até tarde da noite, encurtando o
desconforto da insônia.
No café da manhã
do dia seguinte, ela foi sacudida pelo assombro do pai ao ler o jornal em voz
alta para toda a família, alternando o olhar entre a manchete e o semblante da
filha. O pânico da menina passou por surpresa, afinal, como ela poderia
imaginar que Camila tinha algum envolvimento com Humberto? Perguntou ao pai,
com os olhos lotados de choro, se ele estava preso. A resposta intensificou as
lágrimas e fez reviver seus temores. O abraço do pai tentava consolá-la, mas o
sossego estaria distante daquela casa enquanto Humberto não fosse capturado.

MAUREM KAYNA é
engenheira e escritora (talvez um dia a ordem se altere), baila flamenco e
possui textos publicados em coletâneas, revistas e portais de literatura na
web. A primeira publicação “solo” em EBook foi em 2010, com a seleção de contos
finalista do Prêmio SESC de Literatura 2009 — «Pedaços de Possibilidade», pela
Simplíssimo. Recentemente lançou dois novos volumes de contos em EBook que
podem ser conferidos no site: www.mauremkayna.com.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados à autora. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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