quinta-feira, 15 de agosto de 2013

CAMILA



Por Maurem Kayna
           
Quando começaram a namorar, ela se sentia envaidecida com o olhar atento de Humberto. Gabava-se com as amigas, e algumas chegavam a invejar a paixão do rapaz. Afinal, ela nem era assim tão bonita para inspirar tamanho cuidado. O interesse dele não diminuiu com o tempo, ao contrário, Humberto tornava-se a cada dia mais aplicado, acompanhando-a em todos os programas, apresentara-se à família dela e conquistara a simpatia dos pais com seu comportamento um pouco à moda antiga. Esforçava-se para levar a namorada à faculdade, mesmo que isso significasse algum atraso para o trabalho — contava a seu favor ter o pai como empregador. Agora, o olhar e a presença constante de Humberto alimentam mais desconforto que vaidade, mas ela não divide isso nem com a amiga mais chegada.
Hoje, vendo que já não havia sinais do hematoma no braço e sabendo que ele não poderia levá-la, porque era o dia da semana com maior movimento na oficina, ela foi à aula com uma blusa mais leve, nada muito ousado, mas Humberto a esperava na saída e mal ela entrou no carro veio a inquisição, com voz mansa: porque estava usando aquela roupa tão provocativa justo no dia em que ele não poderia protegê-la? Tentando não gaguejar nem demonstrar fraqueza, fez ares de impaciência e defendeu a inocência das vestes, mas mal sumiu o som da fala sob o barulho do rádio ela sentiu o estômago contraído e as palmas das mãos umedecendo. Falando baixo, em tom carinhoso, Humberto lhe pediu que ligasse para casa, avisando que almoçariam juntos e que, em seguida, ela faria um trabalho da faculdade na casa de uma amiga, mas que chegaria em casa antes das oito. Ela resistiu, pois já tinha prometido à mãe almoçar em casa para agradar a avó que estava passando uns dias com a família. Então almoçarei lá, determinou, e depois lhe darei carona até a casa da sua colega para vocês fazerem o tal trabalho da faculdade, concluiu sem dar margem à discussão.
Vendo-se sem alternativas, ela ligou para a mãe, que prontamente colocou um lugar extra na mesa. Humberto era sempre bem-vindo por conta do sorriso contagiante e da gentileza com todos da casa. Procurou agradar também à avó e até se distraiu um pouco enquanto conversava com a anciã — o suficiente para que a namorada pudesse ir ao banheiro com o celular no bolso.
Sua amiga mais próxima sentia-se atraída por Humberto. No começo, ficara magoada, mas há algum tempo começara a ver nesse interesse uma chance. Já havia feito sugestões pouco explícitas para que se aproximasse de Humberto e até insinuara disposição para uma aventura erótica, onde haveria espaço para ela. Não tinha um plano claro, mas esperava que Humberto correspondesse às investidas da outra e a deixasse de lado. No banheiro, aproveitou a curta interrupção da vigilância e enviou uma mensagem categórica para a amiga, confirmando o endereço do namorado e dizendo o horário e a roupa que deveria usar.
Serviram a sobremesa assim que ela voltou à mesa, e Humberto atravessou-a com olhar desconfiado. Ela gelou, mas já aprendera a se dominar. Enquanto todos comiam pudim de leite, ele aproveitou a animação à mesa para recolher o telefone do bolso dela, mas não encontrou qualquer vestígio que gerasse desconfianças, pois ela se tornara meticulosa. Ainda cismado, mas sem levantar suspeitas, ele perguntou se ela não estava atrasada para o trabalho na casa da colega.
Não trocaram uma palavra sequer no percurso até o apartamento dele. No elevador, já visivelmente irritado, ele se aproximou e, segurando com força desnecessária seus cabelos, cochichou a sentença: por que você me provocou assim hoje, docinho?
A porta se abriu no quinto andar. Uma moradora desculpou-se, achando que interrompia preliminares de uma tarde quente. Ele sorriu ruborizado, como um rapaz bem-educado pego em uma travessura, e abraçou a namorada. Ela esboçou um quase sorriso de criança obediente.
Ao entrarem no apartamento, ela tentou abrir as cortinas da sala, mas Humberto a interrompeu com mãos firmes. Imobilizada e apreensiva, ela desabou. Não quero que você chore, foi a única coisa que disse enquanto a arrastava para o quarto.
Trancada no cômodo com vista para o paredão do prédio vizinho, sem saber quanto tempo ele levaria para voltar ou quais eram as suas intenções, teve medo que sua aposta falhasse. Mas só podia esperar e ficar atenta aos ruídos na cozinha, sem saber se Humberto apenas jogava com seu medo ou se algo inédito viria. Tinha vontade de desabafar e pedir auxílio à família, mas ele havia tomado seu telefone antes de chaveá-la na alcova escura.
A fechadura emitiu um som. Teria valido o risco fazer uma cópia da chave sem que ele percebesse e entregá-la à amiga? Torcia para que ela estivesse vestida para impressionar, que ele se deixasse seduzir, que ninguém se machucasse e que ela pudesse voltar a se mover sem sentir-se observada o tempo todo. Sentou-se na cama, alerta, ensaiando uma coragem inexistente.
A porta se abriu num rompante e Camila mantinha-se muda porque a mão de Humberto fechava sua boca e nariz. Os olhos arregalados procuravam uma explicação no rosto assustado da amiga. Ele, com voz baixa, exigia uma explicação e, diante da gagueira da namorada, voltou os olhos insanos para a outra moça, que tremia sob sua força. Determinou que não gritassem ou se arrependeriam e arremessou Camila sobre a cama. Abraçaram-se as duas, mas apenas uma chorava; a outra, acostumada aos sustos, estava seca.
Humberto segurava uma faca. Não desejo usá-la, disse, mas uma delas sabia o que vinha depois de uma voz chorosa, mesmo ele dizendo não querer fazer algo ruim. O pavor repetido se fazia raiva e cálculo. Apostando que a surpresa impedira ambos de chavear a porta, ela jogou Camila sobre Humberto e correu com todo o medo acumulado nos últimos meses. Desceu a escadaria e ficou aliviada ao não ver o porteiro em seu posto.
Em casa, disse que o trabalho tinha sido concluído antes do previsto e foi passar o resto da tarde com a avó. Falaram de infância e de receitas antigas. Sobre o namorado ela não quis conversar, retrucando não terem nada mais sério quando a avó quis saber sobre a origem daquele moço tão esforçado em ser simpático. A visita da avó a livrou do medo noturno, conversaram até tarde da noite, encurtando o desconforto da insônia.
No café da manhã do dia seguinte, ela foi sacudida pelo assombro do pai ao ler o jornal em voz alta para toda a família, alternando o olhar entre a manchete e o semblante da filha. O pânico da menina passou por surpresa, afinal, como ela poderia imaginar que Camila tinha algum envolvimento com Humberto? Perguntou ao pai, com os olhos lotados de choro, se ele estava preso. A resposta intensificou as lágrimas e fez reviver seus temores. O abraço do pai tentava consolá-la, mas o sossego estaria distante daquela casa enquanto Humberto não fosse capturado.

MAUREM KAYNA é engenheira e escritora (talvez um dia a ordem se altere), baila flamenco e possui textos publicados em coletâneas, revistas e portais de literatura na web. A primeira publicação “solo” em EBook foi em 2010, com a seleção de contos finalista do Prêmio SESC de Literatura 2009 — «Pedaços de Possibilidade», pela Simplíssimo. Recentemente lançou dois novos volumes de contos em EBook que podem ser conferidos no site: www.mauremkayna.com.




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