Por Beatriz
Mecking
Depois de uma
noite em que pouco dormiu, resolveu subir. Pela primeira vez, o fato de ter
perdido o sono não a tinha irritado: abriu muito grandes os olhos, virando-os
para dentro. Naquela madrugada, tomou a iniciativa. Quando chegou em cima,
começou a tatear. Surpresa: o telhado não era de vidro, como pensava. Uma luz
no horizonte permitiu-lhe ver: o seu era semelhante aos demais telhados dos
arredores. Sorriu. Seu sorriso foi-se abrindo em riso franco. E, lá onde
estava, suspensa, teve vontade de gargalhar.
Há quanto tempo
se tinha deixado convencer? E tinha tomado as devidas precauções? Fazia tanto
tempo que aquela idéia devia confundir-se com seu próprio início como pessoa.
Quando era pequena, recolhia-se para escapar das brincadeiras — às vezes não
muito delicadas — dos irmãos maiores. Ouriçava-se num canto, até que as coisas
acalmassem. E seus pais eram severos, ah, eram. Agia o melhor que podia para
não lhes chamar a atenção. Até que encontrou um companheiro para trocar apoios.
Era algo muito incipiente, uns olhares que se espichavam à mesa de um bar,
palavras ricas em dubiedade, pouco mais. Um dia, a mão do rapaz escorregou por
sua face, foi explorando-a devagarinho, tocando cada milímetro. Sentia seu
rosto pegar fogo; tinha vontade de escapar àquele assédio, mas, ao mesmo tempo,
não tinha. E fez-se eterno aquele primeiro afago do qual saiu como se houvesse
sido batizada. Dias depois, seu amigo faltou a um encontro. Foram-se sucedendo
as faltas, sem que compreendesse bem por quê. Ao ser questionado, ele respondeu
que estava por formar-se, iria embora, era melhor não aprofundar... Queria
guardar uma imagem inteira de um relacionamento tão bonito. Com raiva, acusou-o
de falso, de medroso, do que lhe veio à mente. Ao que ele falou: melhor calar,
quando se tem telhado de vidro.
Fez uma pirueta
lá em cima, estava aliviada por ter conseguido. O sol surgindo em cada nicho,
banho de luz. Ela diante de si mesma, descobrindo aquela realidade que sempre
lhe fora pesada. Telhado de vidro, por quê? Aquela idéia a levara a ser
bastante dura. Quem iria protegê-la, a não ser ela própria? Lá embaixo,
passavam as pessoas. Não a viam, passavam apressadas. Cada vez mais ocupadas...
Mauro também era
ocupado. Podia dizer que tinham vivido “cada um na sua.” Não reagiu quando
manifestou que iria embora. Afinal, era como se fosse algo já previsto. Foi
abrir-lhe os fechos e cadeados da porta da rua. Que se fosse, depois de anos de
um relacionamento íntimo que não fora tão íntimo assim. Olhou a filha que
dormia no sofá, enrolada em um cobertor. Teria de ser pai e mãe. Compôs o
rosto, compenetrou-se. E foi levando como podia, pois Laura era uma companhia
adorável.
Abriu os braços,
recebendo a luz. Cerimônia em que voltava a defrontar-se consigo mesma,
aceitando-se. Suavizar o contorno dos olhos, afrouxar os lábios... Podia, de
certa maneira, sentir Deus. Ou percebê-lo dentro de si. Lentamente, foi
virando-se. Focou o pátio, atrás da casa. Viu Laura, o peito confrangeu-se.
“Mãe, preciso ir.” Pedido pungente, balançando no ar. “Mãe, eu volto.”
Oscilou lá em
cima, a perigo. Conseguiu equilibrar-se. Começou a descer devagarinho,
apoiando-se nas próprias mãos. Um novo batismo acontecera.
BEATRIZ MECKING
nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul. Professora de Francês e Literatura,
aposentou-se pela Universidade Federal de Pelotas. Tem publicados os livros de
contos «Tempo de Renascer (1997, Livraria Café, Pelotas)» e «Histórias do
Cotidiano (2001, Livraria Café/ Mundial, Pelotas)», também a novela «Os Passos
de Júlia (2008, Ed. Alternativa, Porto Alegre)». Tem participações na coletânea
em EBook «15 Contos+ Volume I (2012)» e no blog «Sem Vergonha de Contar».
Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados à autora. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
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