Por Michele
Calliari Marchese
Mesmo no verão as
noites estavam frias e causavam certo desconforto no pescoço da Otilia. Mas
afinal, se perguntava: o que estava fazendo sozinha no meio da estrada e com um
filho pequeno enrolado em cueiros num sono que dava gosto; olhando em frente,
para o breu, sem nenhuma luz a iluminar o caminho que dava acesso à estrada
geral para Cruzeiro do Sul?
Ia ou ficava?
Tinha um longo caminho pela frente, mas tinha também outro tão longo caminho de
regresso.
Pensou no pequeno
quando saiu de casa e foi sem direção apenas para desanuviar a mente um tanto
conturbada com os acontecimentos que vinham se desenrolando desde sempre e
desde então vivia num fio que a segurava em casa. Um fio tênue que se
desmancharia tão logo seguisse em frente, sem ninguém saber, sem desculpar-se
com ninguém, sem ficar dando explicações para o inexplicável.
O regresso se
mostrou quente quando viu o filho enrolado na friagem da noite, mas a ida só
com a roupa do corpo para lugar nenhum a deixou pesarosa e com frio. Iria?
Seria um recomeçar de tudo e isso lhe dava a ânsia de seguir adiante e caminhar
sem parar e o pequeno soluçou um instante fazendo com que Otilia voltasse o
pensamento para a empreitada dura que talvez o bebê não suportasse, tampouco
ela.
Olhou para trás
enquanto dava o peito de mamar e viu pequenas luzes ao longe num convidativo
voltar. Tudo era conhecido e mais fácil de viver ali naquela cidade em que
vivia, voltou as costas para a estrada geral e o frio tornou-se insuportável e
igual ao que sentiu em toda a sua vida, um frio de amargura que ia em seu
íntimo e que não saía de seu peito nem quando o neném mamava com fome.
Finalmente pensou
em si. A sua carne precisava de liberdade, de planos e objetivos que a fizessem
perder o ardume de sua alma, precisava alcançar o amor próprio para seguir
adiante, mas um medo podava-lhe o movimento das pernas. A cabeça ia, mas as
pernas não obedeciam e o pequeno dormiu pendurado no peito.
Virou-se para a
estrada geral e pensou que estava com fome e onde estava com a cabeça ao sair
de casa sem um pedaço de pão. Olhou para os pés do pequeno para certificar-se
que estavam bem cobertos e arrumou o cueiro em sua cabeça para que a friagem
não pegasse na moleira. Olhou para si e estava um trapo, como sempre esteve durante
a vida inteira e sabia que podia modificar-se se quisesse, mas conseguiria?
Conseguiu dar um
passo e parou, olhou para trás e sentiu novamente aquele inverno relutante e as
luzes a piscarem nas casas, algumas chaminés com fumaça e um cheiro de comida
avançou-lhe nariz adentro, fazendo com que fechasse os olhos um instante para
descobrir o que estava assando lá longe distante de tudo, mas ao mesmo tempo
dentro de seu coração.
Enrolou o filho
mais um pouco com medo que o gelo que sentia em seu corpo passasse para ele e
então se voltou para a cidade e começou a chorar.
Chorou com os
soluços sofridos e com a verdade que sentia dentro de si, um renovar de vida,
de sentido, de luta íntima e cuidou para que as lágrimas não caíssem no
rostinho do pequeno que já estava colado ao seu. Sentiu o calor do nariz dele e
foi isso o que lhe deu forças para se decidir, porque mesmo no verão as noites
eram frias e aquele desconforto em sua nuca a fez decidir-se pelo que era
melhor para a sua vida e para a vida do filho tão pequeno, tão dependente que
ressonava em seu colo alheio às suas decisões.
Bastava-lhe o
amor.
E era só.
MICHELE CALLIARI
MARCHESE é catarinense de Xanxerê e contista. Participou em coletâneas
publicadas pela editora Literata de São Paulo nos Livros «UFO-Contos não
Identificados (2009)», «Espectra (2010)» e no «Livro dos Prazeres»
publicado pelo SESC de Santa Catarina em 2008. Um de seus contos está na
coletânea em EBook «15 Contos+ Volume I” (2012)» e tem 24 de seus causos no
primeiro volume de «Causos da Campina (2013)», EBook a ser lançado pelo projeto
«Quintextos». Publica regularmente nos sites «Sem Vergonha de Contar» e Recanto
das Letras.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados à autora. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito à autora original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
sempre acreditei que a melhor maneira de mudar o caminho eh olhar para o que teremos e nao para o que deixamos, e essa empreitada ainda se torna mais facil quando uma parte de nos esta ao mesmo tempo dentro e fora, encostada no peito. Como sempre, maravilhosas palavras.
ResponderExcluirObrigada minha amiga, pelas palavras! E quem é que já não se deparou com a indecisão entre o ir e o voltar? Beijos querida!
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