quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O ANJO QUE PEDIA ESMOLAS



Por Antonio Maria Santiago Cabral
           
Jocivaldo, o marido, tolo, mas próspero capiau nordestino, costumava passar longas temporadas fora de casa, tratando de assuntos de compra e venda de gado. Sebastiana, a mulher, morena trigueira, cabocla interiorana taluda e dona de um verdadeiro furor uterino, aproveitava sempre as viagens do marido para lhe enfeitar a testa com belos e memoráveis chifres.
Tudo ia bem, até que, em certa ocasião, depois de dois dias de viagem, o cavalo de Jocivaldo assustou-se com uma cobra no caminho, derrubou o caboclo e desembestou pelo mato. Não o encontrando, após várias horas de procura, Jocivaldo retornou para casa. Depois de quatro dias de uma longa caminhada a pé, chegou a casa já noite alta:
— Sebastiana! Sou eu, abre!
Problema... Sebastiana estava empernada com Soró, um caboclinho alourado e franzino, metido a gaiato, que chegara ao povoado após a partida de Jocivaldo e que logo botara os olhos gulosos em cima de Sebastiana. A cabocla safada, assim que olhara para Soró sentira-se dominada pela luxúria de conhecer “carne nova”. Então, Soró viera e agora estava ali, enrolado na mesma cama com a cabocla chifreira. Sebastiana assustou-se:
— Meu Deus, o meu marido, ele vai nos matar! Foge, foge!
— Para onde?
— Corre bem rapidinho para o fundo do quintal, procura o galinheiro e fica trepado lá, caladinho!
E Soró assim fez. Pegou um saco onde guardava as suas poucas roupas e se escafedeu para o quintal. As galinhas ficaram um pouquinho alarmadas com a presença daquele estranho, mas se aquietaram quando Soró empoleirou-se em dois grossos troncos, a dois metros do chão. Sebastiana, já recomposta, abriu a porta para Jocivaldo, que entrou, tirou o gibão, colocou a espingarda no chão e esparramou-se na cadeira:
— Ah, mulher, até que enfim! Meu cavalo, assustado por uma cobra, desembestou pelo mato e não consegui mais achá-lo. Voltei do meio do caminho a pé! Estou...
Não terminou a frase porque, nesse momento, veio lá do quintal um barulho horrível de paus e palhas quebradas, e um infernal cacarejo de galinhas. Jocivaldo pegou a espingarda e correu para o quintal, gritando:
— É ladrão! É ladrão!
Era noite de lua cheia e o quintal estava sob uma difusa claridade, de modo que Jocivaldo deu de cara com o caboclinho Soró, estatelado no chão. Apontou e engatilhou a espingarda, gritando:
— Vou te matar, cabra safado, ladrão da peste!
Soró, caboclo astucioso, cheio de artimanhas, pensou rápido (e tinha que pensar!...) e gritou:
— Espere! Não atire! Não é nada disso que você está pensando!
— E o que é, cabra safado? Fala!
— Sou um anjo! Sou um anjo!
— Um anjo?!
— Sim, meu irmão, sou um anjo enviado por Nosso Senhor Jesus Cristo! Mas calculei mal o meu pouso e desci em cima do galinheiro!
Jocivaldo vacilou e Soró tomou coragem, levantando-se e sacudindo do corpo a poeira e restos de palhas. Na claridade, Jocivaldo observou que o sujeito tinha os cabelos alourados, o porte esguio e a fala mansa. Parecia um anjo mesmo, pensou. Retorquiu, já mais calmo:
— E o que um anjo veio fazer aqui no meu quintal?
— Está havendo uma crise danada lá no Céu! Está faltando alimentos e a maioria dos anjinhos está passando fome, uma tristeza! Nosso Senhor Jesus Cristo me enviou ao mundo para pedir aos homens de posses e de bom coração — assim como você — uma ajuda.
— Que tipo de ajuda?
— Comida para os anjinhos que estão passando fome. Eu já trouxe um saco, olhe!
Jocivaldo olhou para o saco na mão de Soró e se convenceu. Chamou por Sebastiana:
— Ô mulher, vem aqui!
Sebastiana, toda se tremendo de medo, acercou-se.
— Esse moço aqui é um anjo, enviado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Veio ao mundo para conseguir comida para os anjinhos que estão passando fome lá no Céu. Pega esse saco aí e enche com farinha d’água e carne de sol. Coloca também uns pedaços de rapadura e um pouco de doce de goiaba.
Soró, o caboclinho safado, conteve-se a custo para não rir. Pensou, divertido: “Que idiota! Comi a mulher dele e ainda levo a comida da despensa. Vou me dar bem duas vezes!”
Enquanto Sebastiana foi providenciar os mantimentos, Jocivaldo ficou conversando com o falso anjo sobre as novidades do Céu. A essa altura, já tinham providenciado uma bela cadeira de balanço e um refresco de maracujá para Soró, tendo em vista que a viagem do Céu para a Terra fora muito cansativa e ele precisava refazer as energias, porque até os anjos cansam...
Dez minutos depois, Sebastiana voltou com o saco cheio de comida e o entregou a Jocivaldo, que falou de modo comovido para o anjo:
— Tome, meu irmão, leve essa comida para os anjinhos. E que o Nosso Senhor me abençoe e me reserve um bom lugar ao seu lado no Céu!
— Sim, meu irmão, o Nosso Senhor saberá reconhecer a sua caridade. Os seus pecados serão todos perdoados.
— Amém, meu anjo, amém!
Soró, o falso anjo, colocou o saco nas costas e se dirigiu para a porteira de saída do rancho. Quando já estava bem próximo, Jocivaldo gritou:
— Ô seu anjo, peraí!
Soró parou, voltou-se e falou mansamente:
— Sim, meu irmão?
— O senhor não voa?
— Sim, claro!
— E o senhor não veio lá de cima, do Céu?
— Sim, claro!
— Pois trate de voltar voando, ora! — apontou e engatilhou a espingarda para o horrorizado Soró.
Não me contaram o resto da história...

ANTONIO MARIA SANTIAGO CABRAL, 69 anos, é professor e bancário aposentado, residente em São Luís do Maranhão. Poeta e escritor semiprofissional, também exerce atividades de produtor de textos. Já publicou 8 livros impressos e tem mais de 1.500 textos postados nos mais diversos sites da Internet.




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