Por Antonio
Maria Santiago Cabral
Jocivaldo, o
marido, tolo, mas próspero capiau nordestino, costumava passar longas temporadas
fora de casa, tratando de assuntos de compra e venda de gado. Sebastiana, a
mulher, morena trigueira, cabocla interiorana taluda e dona de um verdadeiro
furor uterino, aproveitava sempre as viagens do marido para lhe enfeitar a
testa com belos e memoráveis chifres.
Tudo ia bem, até
que, em certa ocasião, depois de dois dias de viagem, o cavalo de Jocivaldo
assustou-se com uma cobra no caminho, derrubou o caboclo e desembestou pelo
mato. Não o encontrando, após várias horas de procura, Jocivaldo retornou para
casa. Depois de quatro dias de uma longa caminhada a pé, chegou a casa já noite
alta:
— Sebastiana! Sou
eu, abre!
Problema...
Sebastiana estava empernada com Soró, um caboclinho alourado e franzino, metido
a gaiato, que chegara ao povoado após a partida de Jocivaldo e que logo botara
os olhos gulosos em cima de Sebastiana. A cabocla safada, assim que olhara para
Soró sentira-se dominada pela luxúria de conhecer “carne nova”. Então, Soró
viera e agora estava ali, enrolado na mesma cama com a cabocla chifreira.
Sebastiana assustou-se:
— Meu Deus, o meu
marido, ele vai nos matar! Foge, foge!
— Para onde?
— Corre bem
rapidinho para o fundo do quintal, procura o galinheiro e fica trepado lá,
caladinho!
E Soró assim fez.
Pegou um saco onde guardava as suas poucas roupas e se escafedeu para o
quintal. As galinhas ficaram um pouquinho alarmadas com a presença daquele
estranho, mas se aquietaram quando Soró empoleirou-se em dois grossos troncos,
a dois metros do chão. Sebastiana, já recomposta, abriu a porta para Jocivaldo,
que entrou, tirou o gibão, colocou a espingarda no chão e esparramou-se na
cadeira:
— Ah, mulher, até
que enfim! Meu cavalo, assustado por uma cobra, desembestou pelo mato e não
consegui mais achá-lo. Voltei do meio do caminho a pé! Estou...
Não terminou a
frase porque, nesse momento, veio lá do quintal um barulho horrível de paus e
palhas quebradas, e um infernal cacarejo de galinhas. Jocivaldo pegou a
espingarda e correu para o quintal, gritando:
— É ladrão! É
ladrão!
Era noite de lua
cheia e o quintal estava sob uma difusa claridade, de modo que Jocivaldo deu de
cara com o caboclinho Soró, estatelado no chão. Apontou e engatilhou a
espingarda, gritando:
— Vou te matar,
cabra safado, ladrão da peste!
Soró, caboclo
astucioso, cheio de artimanhas, pensou rápido (e tinha que pensar!...) e
gritou:
— Espere! Não
atire! Não é nada disso que você está pensando!
— E o que é,
cabra safado? Fala!
— Sou um anjo!
Sou um anjo!
— Um anjo?!
— Sim, meu irmão,
sou um anjo enviado por Nosso Senhor Jesus Cristo! Mas calculei mal o meu pouso
e desci em cima do galinheiro!
Jocivaldo vacilou
e Soró tomou coragem, levantando-se e sacudindo do corpo a poeira e restos de
palhas. Na claridade, Jocivaldo observou que o sujeito tinha os cabelos
alourados, o porte esguio e a fala mansa. Parecia um anjo mesmo, pensou.
Retorquiu, já mais calmo:
— E o que um anjo
veio fazer aqui no meu quintal?
— Está havendo
uma crise danada lá no Céu! Está faltando alimentos e a maioria dos anjinhos
está passando fome, uma tristeza! Nosso Senhor Jesus Cristo me enviou ao mundo
para pedir aos homens de posses e de bom coração — assim como você — uma ajuda.
— Que tipo de
ajuda?
— Comida para os
anjinhos que estão passando fome. Eu já trouxe um saco, olhe!
Jocivaldo olhou
para o saco na mão de Soró e se convenceu. Chamou por Sebastiana:
— Ô mulher, vem
aqui!
Sebastiana, toda
se tremendo de medo, acercou-se.
— Esse moço aqui
é um anjo, enviado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Veio ao mundo para conseguir
comida para os anjinhos que estão passando fome lá no Céu. Pega esse saco aí e
enche com farinha d’água e carne de sol. Coloca também uns pedaços de rapadura
e um pouco de doce de goiaba.
Soró, o
caboclinho safado, conteve-se a custo para não rir. Pensou, divertido: “Que
idiota! Comi a mulher dele e ainda levo a comida da despensa. Vou me dar bem
duas vezes!”
Enquanto
Sebastiana foi providenciar os mantimentos, Jocivaldo ficou conversando com o
falso anjo sobre as novidades do Céu. A essa altura, já tinham providenciado
uma bela cadeira de balanço e um refresco de maracujá para Soró, tendo em vista
que a viagem do Céu para a Terra fora muito cansativa e ele precisava refazer
as energias, porque até os anjos cansam...
Dez minutos
depois, Sebastiana voltou com o saco cheio de comida e o entregou a Jocivaldo,
que falou de modo comovido para o anjo:
— Tome, meu
irmão, leve essa comida para os anjinhos. E que o Nosso Senhor me abençoe e me
reserve um bom lugar ao seu lado no Céu!
— Sim, meu irmão,
o Nosso Senhor saberá reconhecer a sua caridade. Os seus pecados serão todos
perdoados.
— Amém, meu anjo,
amém!
Soró, o falso
anjo, colocou o saco nas costas e se dirigiu para a porteira de saída do
rancho. Quando já estava bem próximo, Jocivaldo gritou:
— Ô seu anjo,
peraí!
Soró parou,
voltou-se e falou mansamente:
— Sim, meu irmão?
— O senhor não
voa?
— Sim, claro!
— E o senhor não
veio lá de cima, do Céu?
— Sim, claro!
— Pois trate de
voltar voando, ora! — apontou e engatilhou a espingarda para o horrorizado
Soró.
Não me contaram o
resto da história...
ANTONIO MARIA
SANTIAGO CABRAL, 69 anos, é professor e bancário aposentado, residente em São
Luís do Maranhão. Poeta e escritor semiprofissional, também exerce atividades
de produtor de textos. Já publicou 8 livros impressos e tem mais de 1.500
textos postados nos mais diversos sites da Internet.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
Ahhhhh, assim não vale...Um conto prá lá de bom!!! Parabéns!
ResponderExcluir