Por Heitor
Herculano Dias
Em memória do
Índio Galdino.
O emblema do
clube Vasco da Gama, belo trabalho feito em latão, sempre atraiu a atenção de
quem se dignava olhar ao menos por uns poucos segundos para o tosco carrinho de
madeira, construído com tábuas arrebanhadas por ele aqui e ali, sob o qual
prendera as quatro rodinhas de rolimã. Em uma das extremidades daquele caixão
móvel ficavam as duas travas que suportavam um pedaço de cabo de vassoura, onde
as mãos do negro Joaquim se apoiavam para dirigir seu veículo de carga.
Entulhando-o de pedaços de papelão amarrados por sebosas fitas plásticas, ele
fazia invariavelmente o mesmo percurso através das ruas do velho centro da
cidade, Mem de Sá, Gomes Freire, Lavradio, até recolher-se, tarde da noite,
debaixo de qualquer marquise, para suas poucas horas de sono. Seus dois amigos,
Manoel e Antonio, bem mais novos do que ele, faziam o que podiam para velar por
seu sono, uma dormida com poucos sonhos e muitos sobressaltos, pois que os
trocados adquiridos com a venda do papelão tinham que ser vigiados atentamente,
sob pena de o café com pão seco do dia seguinte permanecer unicamente em seu
famélico desejo. Há anos que os três companheiros andavam juntos, inseparáveis,
todos conhecidos pelos frequentadores dos botequins da região unicamente por
seus apelidos, muito embora de lusitanos nada possuíssem, a começar por
Joaquim, crioulo retinto que nem sequer origem de português ultramarino possuía
para justificá-lo. Às vezes se esquecia de que por Claudionor lhe tratavam em
seus dias de mocidade, mas se instado a mostrar algum papel onde estivesse
testificado seu verdadeiro nome de nascença, nada poderia oferecer como
comprovação de seu verdadeiro nome de batismo, considerando-se não mais que um
eufemismo esse termo, privilégio dos felizes cristãos que tiveram salpicada sua
testinha com água da sacra pia católica.
Durante suas
inúmeras noitadas de recolhimento forçado em delegacias policiais, graças a
alguns copos de cachaça além da conta, que culminavam por entreveros contra os
co-participantes dos abrigos sob as incontáveis marquises da cidade, declarara
sempre aos impacientes plantonistas da lei se chamar Claudionor. De quê, não
lhe perguntassem porque ele nada poderia esclarecer. O emblema vascaíno, achado
em um terreno baldio transformado em estacionamento clandestino, vez por outra
nas avançadas horas da madrugada em hotel de alta rotatividade para os carecedores
de economias, foi por ele pregado cuidadosamente na frente do seu transportador
de papelão, e não demorou muito para lhe granjear o epíteto de Vascaíno, logo
substituído por Joaquim, para muitos um sinônimo. Destino ingrato, o dos três
inseparáveis amigos, condenados a viver pelas tristes, escuras e escarradas
vielas, que de dia ainda continham sinais para lhes alegrar, qual uma ou outra
saudação, uma brincadeira qualquer concernente ao grande emblema vascaíno, e na
melhor das hipóteses alguns centavos a mais no quilo do papelão vendido. Quando
a noite descia com suas luzes coloridas dos pequenos hotéis, o vai-e-vem dos
perambulantes solitários à espreita pelos cantos, e os perfis ondulantes das
bundas e seios nos tristes portais, a única preocupação de Joaquim e seus
companheiros era escolher o ponto mais estratégico para mais uma noite ao
relento, de preferência diante da porta de um banco. Nada de se acostarem perto
de restaurantes, nem de bares, muito menos perto daqueles velhos sobrados de
hospedagem, convite a uma expulsão ao raiar do dia, certamente sonorizada a
palavrões e temperada a jatos de água fria.
Joaquim andava
preocupado com a saúde de Antonio, que já não era tão lépido e fagueiro desde a
tarde em que tentou atravessar atrás dele a Lavradio, descurando da atenção
necessária ao ponto de a roda de um caminhão esmagar-lhe um dos pés,
acontecimento que encheu profundamente de mágoa e piedade pelo fiel amigo o bom
Vascaíno, fato que tampouco passou desinteressado diante o solidário Manoel. O
acontecido não privou Antonio de caminhar, mas os deslocamentos do trio pelas
ruas já não podiam ser feitos como antes, visto que os passos de Antonio
careciam de alguma ligeireza. Em seus olhos Joaquim podia divisar sofrimento e
dor, olhos de um amarelo-cinza que emitiam o brilho completo da incompreensão
diante os violentos e inesperados acontecimentos que a vida lhes reservara. Em
algumas ocasiões de festa, traduzível tal termo por imprevistos encontros de
sólidos restos de refeições nas lixeiras, não sendo difícil entre esses
encontros a descoberta de uma costeleta de porco onde seu feliz consumidor
havia esquecido alguns vestígios de aproveitável carne, o pobre e manco Antonio
esquecia as doloridas lembranças daquele pesado pneu.
Manoel, dos três
o mais valente, possuía bem pulsante o desprezo e o medo que os seres privados
de teto, nas grandes cidades, têm pelos homens fardados, e não podia deixar de
expressar a seu modo o desagrado que lhe causava a aproximação de um policial,
característica essa que a Joaquim requeria contornar diplomaticamente com um
“Olá, chefe” ao dividirem a calçada com algum dos objetos da antipatia do
amigo. As asquerosas botinas faziam ressoar na cabeça de Manoel passados
pontapés em portas frágeis, que se rompiam sem muito esforço para seus
executores e liberavam gritos histéricos de mulheres e crianças não-cidadãs da
república infernizada, ocasiões em que sem dúvida alguma o mais aconselhável,
para seres desprovidos de resistência física proporcional aos mastodontes
fardados, melhor conselho não havia senão o de correr. O perfil encurvado
daquele que agora se aproximava dos três amigos, entretanto, não terminava em
uma botina, mas certamente nuns grosseiros pés imundos, cheios de crostas
negras onde à primeira vista seria difícil discernir entre os efeitos da falta
de água e a acomodação de cascas de recém cicatrizadas feridas; e a voz
enrolada por álcool e catarro se dirigiu a Joaquim dentro do fechado dialeto
dos deserdados. A conversa que se estabeleceu entre os dois foi apreciada com
curiosidade por Antonio e Manoel, não lhes escapando o nervosismo que o suor do
interlocutor do amigo Vascaíno fazia transparecer, estado de espírito que se
concretizou na frase de despedida do imundo visitante: “Eles estão pensando que
sou algum otário. Acertei um com uma garrafa no quengo! Baguncei mesmo, e
corri!”. Ficaram os três a apreciar a figura maltrapilha, suja e malcheirosa
que se afastava a passos incertos, largando um lastro de álcool e tragédia
humana.
— Ele vacilou,
vacilou mesmo, meus amigos —, foi o comentário único que Joaquim se importou em
fazer para Manoel e Antonio, que, emudecidos, fixaram nele seus olhares de
apoio e compreensão. O recente desabafo que os três ouviram do desconhecido,
agora sumido na escuridão, não lhes roubou a preocupação pela escolha de um
ponto para o pernoite, posto que era mais que chegada a hora de descansar das
longas caminhadas à cata de papelão e jornal. Era a hora para o merecido
descanso, do qual evidentemente estavam dispensadas as faiscantes mas não
tristes meninas encostadas nos portais mal iluminados, vivamente interessadas
em catar também seus próprios papéis e papelões nos manjados hotéis hispânicos
com seus letreiros azuis e vermelhos. O iodo ardia na cabeça do homem, mas o
que mais o incomodava era aquele triste curativo sobre a testa, que o impedia
de enxergar com facilidade. Saiu do pronto socorro da Praça da República
tateando os bolsos, mal ouvindo as recomendações da enfermeira quanto a evitar
beber pelo menos por vinte e quatro horas, a fim de não complicar o efeito do
soro antitetânico. Ele sempre soubera que esse tal de soro as pessoas tomam
quando se espetam com pregos enferrujados, mas não se lembrava de ter se ferido
com nenhum prego. Em todo caso, esses doutores sabiam mais, e o que importava
era terem estancado a sangueira da cabeça, mas tinha outra coisa agora a lhe
causar preocupações, e daí seu reflexo em levar as mãos aos bolsos da calça na
procura ávida. Mas lá estavam eles, intocados. No pronto socorro tem sempre um
tira de plantão, e quem sabe alguém podia ter revistado suas roupas na hora dos
curativos? Mas não, mesmo porque ele não precisou tirar a roupa, aliás, só a
camisa, que era sangue puro. Quando voltasse para casa, a porca da Juçara
naturalmente iria fazer aquele auê — “O que foi isso? Foi assaltado? Ai, meu
Deus!”. — Assaltado coisa nenhuma, vai dormir antes que eu é que te assalte com
um par de cadeiradas nas fuças! Deixa pra lá, e meu dinheiro? Garfaram minha
grana no hospital? Não, não, está aqui, ainda bem. Preciso agora é de um canto
tranquilo para uma cheirada no capricho, claro.
Aqui nestas
bandas da cidade não tem erro. Não se pode é vacilar, pois vira e mexe passam
os homens como não querendo nada, suas caretas de otário olhando todo mundo de
dentro do camburão. Uns veados, isso sim. Ele precisava era achar uma farmácia
aberta, tem que ter alguma de plantão por aí, não é possível. É melhor tratar
disso primeiro, depois me entoco num cantão qualquer e cheiro uma no capricho,
mas antes de tudo a farmácia, porque senão o diabo foge. O que é que está
olhando, o que foi, nunca viu ninguém assim não, e coisa e tal, e ele foi aos
tropeços pelas calçadas, a camisa de azul quase nada, mas de vermelho-sangue
quase tudo, e por pouco não dá de cara com um poste na rua mal iluminada, e
aparece-lhe de repente a mulher de calça branca, colante, peitos quase se
derramando blusa estampada abaixo, e vamos lá amorzinho, vem cá, vem, gostoso,
e vai catar outro, vagabunda, que não tou a fim, e saia do meu caminho, e
afinal uma farmácia aberta. Só um cliente, logo pediu e pagou, os caras e a
moça do caixa espantados e comentando as manchas da camisa. Saiu rápido que nem
precisava embrulhar, se demorassem mais era capaz de quebrar todos eles,
cambada de palhaços, me dá logo essa porcaria desse vidro, quanto é, toma lá.
Antonio foi o primeiro a pegar no sono. Diante da marquise havia uma árvore que
escurecia aquele cantinho para a soneca. Manoel ainda demorou um pouco,
desconfiado, olhando o movimento dos automóveis, que àquela hora era quase
nenhum ali na Mem de Sá. Passou um gato malhado, e ele, só de brincadeira,
deu-lhe uma corrida, mas foi chamado de volta por Joaquim. Não era hora disso,
o melhor era mesmo se acomodarem no largo papelão, junto ao portal da agência
bancária, que amanhã seria outro dia, e nada como um descanso merecido, embora
a sensação de um buraco na barriga incomodasse. Mas fome é assim mesmo, não ia
passar mais ninguém por ali para o risco de pedir um trocado para o pão.
Cachaça não havia, que problema, meu Deus! As criancinhas corriam de um lado
para o outro, todas elas vestidas de branco. Todas não, havia uma menininha
escura, com os cabelos amarrados em duas pequenas trancinhas coladas ao coro
cabeludo, e ela olhava sorridente para Joaquim, perguntava-lhe alguma coisa que
ele não entendia. Por mais que insistisse, a menina não se fazia entender, e aí
então ele notou que a crioulinha era a cara da Isabel. Coitadinha da Isabel,
onde andou esse tempo todo que nunca mais procurou seu pai? Mas também pudera,
um pai mendigo e cachaceiro, nenhuma filha quer saber. E aí as outras
garotinhas foram se chegando para perto de Isabel, mas nenhuma delas sorria. Só
Isabel mostrava para ele seus pequeninos dentes de seus cinco aninhos. Seriam
cinco mesmo? Não se lembrava mais.
Não compreendeu
as outras meninas, de repente, a puxarem Isabel pelos braços, gesticulando.
Umas puxavam, outras faziam gestos para ele freneticamente, nervosas, com medo.
Queriam levar Isabel dali, mas ela lutava para se libertar dos braços da
turminha.
Ele não
compreendia nada, e estranhou quando delas vieram umas gotas frias, bastante
esquisitas, direto na cabeça dele. Diabo, por que Isabel e suas colegas estão a
me molhar? Chegou a armar um baita sorriso, menina inteligente do pai, sabe que
o velho aqui adora uma pinga e está é me molhando com uma caninha da boa, ah, é
isso! Saiu daquele sonho bom no meio de um forte cheiro que era só parecido com
cachaça, mas que de cachaça só se fosse parati do demo, porque logo as
labaredas azuis e amarelas lhe cercaram o corpo, e as dores inclementes e
dançantes subiram de seus pés descalços para a barriga, a cabeça.
Tentou afastar as
quentes línguas esvoaçantes, sem sucesso. Sua garganta se fechou, seus olhos
logo se derreteram, e o último aspecto da vida penetrou por seus ouvidos na
forma dos latidos assustados e chorosos de Antonio e Manoel, prudentemente
afastados daquela inesperada e quentíssima roupa que envolvia o corpo em
convulsão do bom e paciente amigo Joaquim. Ganidos de incompreensão para com o
mundo dos homens ecoaram por um bom tempo, depois somente o ruído dos passos
apressados de alguém que voltaria orgulhoso para casa. Afinal, nenhum vagabundo
poderia agredi-lo sem um merecido castigo.
HEITOR HERCULANO
DIAS é natural da cidade do Rio de Janeiro. Diplomado em Direito pela antiga
Faculdade de Direito do Estado da Guanabara, exerceu a advocacia por mais de
três décadas após saltitar algum tempo por entre funções burocráticas diversas
e o Desenho — técnico e artístico — este último chegando a iludi-lo algum tempo
como sendo sua natural vocação. Aposentado, mergulhou fundo na Literatura,
inicialmente tentando o garimpo poético, do qual logo se afastou para se
dedicar essencialmente a crônicas, contos e romances. Considera a produção
literária seu melhor remédio para uma longevidade saudável; e ama a vida tal
como ela é, reconhecendo a todas as pessoas o direito divino ao livre arbítrio
e sem radicalismos de quaisquer espécies. Tem em seus filhos e sua neta Lara
Estrela o coroamento de seu feliz estado de espírito. Publicou os romances
«AlphaZma» e «Os Paulistas», «Contos Suburbanos» e um pequeno livro de viagens:
«O Jeito Australiano de Ser». Recentemente concluiu seu terceiro romance,
intitulado «Os Apóstolos Desventurados».
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
Excelente conto, além de belíssima homenagem. Convida-nos a refletir em que se transformaram alguns seres ditos humanos...
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