sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

A ÚLTIMA PEÇA DE JACK JIGSAW


 
Por Teresa Cardoso

Um som estridente arrancou-me do sono, uma bolha de ar quase puro onde eu luxuosamente ousava pairar. Era o toque do telefone. Perdera a conta às vezes em que, no último ano, aquele som feria o silêncio das nossas noites. Atendeste o telefone. Atendeste-o tão desperto como se nunca tivesses estado a dormir. Suponho que o hábito te ensinou a fingir o sono ou, pelo menos, a dormir em permanente alerta.
«Venha! Está a ter outra crise.» Eram estas as palavras que despoletavam os movimentos mecânicos que se seguiam. Beijavas-me na testa, buscando força. Levantavas-te e vestias o fato-de-treino que estava sempre sobre a poltrona. Depressa.
O hábito também te poliu as reacções procedentes. A revolta desvaneceu-se. A ansiedade permaneceu por pura obrigação moral. No início, batias as portas furiosamente. Era um modo sub-reptício de gritar. Abrir as goelas implicava um esforço adicional. E, a causa não merecia mais esforços do que os estritamente necessários à luz da tua consciência. No início, descias as escadas a correr. Depois, passaste a sair apenas em passo largo e apressado para uma noite escura e fria que haveria de tornar-se mais escura e mais fria no teu regresso. Por vezes, voltavas a acelerar o ritmo mas, logo em seguida, hesitavas entre continuar ou deixar-te cair propositadamente. «Desistir ou continuar a vergar-me a obrigações puramente convencionais?» Era esta a pergunta que passara a pairar constantemente sobre ti.
Depois de cruzares a porta do nosso quarto, eu levantava-me e, vestindo o roupão, dirigia-me à janela para te ver entrar no carro. Sentia um conforto paradoxal ao ver-te arrancar a alta velocidade, porque confirmava as minhas certezas. Embora jurasses renunciar à moral a cada regresso, eu sabia que da próxima vez irias voltar a ignorar a mistura de cansaço e indiferença que te desafiava.
Em seguida, voltava para a cama, cumprindo o meu próprio ritual mecânico. Era um corolário do teu. Não! Fazia parte do teu. Saías para a noite fria, qual herói nobre que, salvando o pobre de espírito, punha a sua própria vida em perigo. Eu assistia. Sim! Eu providenciava-te as armas, mas tu eras o único que podia ganhar a luta, ainda que para ti ela representasse um contra-senso.
Esperava por ti desperta, lembrando detalhes das nossas vidas anteriores a esta nossa sobrevida, como que rezando para te proteger ou te ressuscitar.

Lembrava-me de ti no meio de borboletas rosa-carmim numa estrada seca e poeirenta, enquanto atravessávamos a Índia de bicicleta e mochila às costas. Íamos em busca dos nossos ‘eus’ antecessores. Nunca os encontrámos. Ao invés disso, achámos um ‘nós’ intemporal.
Lembrava-me do dia em que te apercebeste que eu levava a palavra organização excessivamente à letra, porque arrumava as roupas pelas suas cores ou as especiarias pela ordem alfabética dos seus nomes. Era o nosso primeiro Natal. Eu estava no jardim a ultimar a decoração natalícia quando tu, vindo do interior da casa, te abeiraste de mim com um olhar indefinido e declaraste-me ao ouvido: «Venho pedir-te um presente. Um presente que é uma promessa com prazo de validade interminável. Eu aguento viver com uma mulher obcecada pela ordem. Mas promete-me, Querida, que nunca tentarás ordenar-me, ou sequer consertar-me. Temo que enlouquecesses. Em nós, o papel de louco é meu. A ti, cabe-te equilibrar-nos. Promete!» Eu prometi. E esforcei-me por fazê-lo todos os dias e todas as noites da nossa vida. 
Naquela noite, a tua ausência prolongou-se invulgarmente. Haviam passado 3… 5… 6 horas desde o momento em que me havias deixado, e não tinhas ainda regressado. À medida que os minutos se seguiam uns atrás dos outros, a inquietude crescia. Telefonei vezes sem conta. Não atendeste. Telefonei de novo. Sem resposta. A minha mente jorrava milhares de pensamentos trágicos. Em determinado momento, o meu corpo foi acometido de uma dormência incapacitante. Até que a ansiedade se tornou de tal modo inultrapassável que me obriguei a levantar, dobrando as pernas com as minhas próprias mãos. Vesti-me. E, quando me preparava para chamar um táxi, ouvi a porta de entrada bater. Esqueci-me do corpo dormente e corri. Dei contigo parado, junto à porta de entrada. Os teus olhos verdes estavam vazios. Abracei-te. O teu pescoço estava frio e o teu casaco pareceu-me húmido, embora tivesse a certeza que não chovera. Não respondeste ao meu abraço.
Apesar da tua figura imponente, era habitual regressares esgotado. Contudo, eu vislumbrava sempre um resquício de força que procurava potenciar a cada recuperação. Naquela noite, no entanto, parecias ter sido expurgado de toda a energia, até da vitalmente indispensável. Tive medo. Por momentos, duvidei se conseguiria chamar-te à vida; se o que quer que te tinha deixado desocupado seria o último empurrão para um poço fundo, escuro e frio. Senti que perdera a capacidade de dominar os teus instintos de esvaziamento. Afastei-me de ti, desorientada pelo teu olhar e pela tua inanidade. Mas, num gesto rápido, puxei-te para o quarto. Deitei-te sobre a cama, e depois deitei-me sobre ti em posição fetal. Queria aquecer-te para te ressuscitar. Sem nunca te olhar, esfreguei repetidamente as minhas mãos nas tuas, enquanto tu permanecias imóvel.
Passados largos minutos ou largas horas, senti os teus braços recuperarem a força e me rodearem. Como um crédulo quase desprovido de esperança assistindo a um milagre, olhei para ti. Finalmente, deste-me o beijo que davas todas as noites, e que eu temi não voltar ter. Senti a regressar-te em câmara lenta. E, com o teu regresso, vislumbrei um foco de luz, ainda que fraco, nos teus olhos. Alguns minutos depois, soltaste: «Acabou».
Momentaneamente, não compreendi o que me querias dizer. Eu estava inconscientemente a evitar a resposta a uma dúvida que me assolava há largos meses. O que aconteceria quando chegasse este dia, o dia da derradeira crise, aquela que não conseguirias resolver? Conhecia os caminhos e as curvas que te guiavam como a palma da minha mão. Conhecia os montes e vales que percorrias. Conhecia-te como nem tu próprio te conhecias, mas a resposta a esta pergunta permanecia um enigma para mim. Naquele instante, voltei a sentir-te como um estranho. Porém, e mais uma vez, este sentimento durou apenas alguns segundos. Prontamente, renovei a promessa de que nunca deixaria que o cordão entre nós se quebrasse. Acontecesse o que quer que acontecesse.
Nas noites e dias seguintes, houve silêncios intermináveis que não pude combater, e palavras soltas e grunhidos a que não soube dar continuidade. Contudo, nunca se despedaçou o ‘nós’. Mantivemos cumplicidade nos gestos, nos olhares, nos movimentos. Eu percebi que o muro de areia que construíste à tua volta era uma mera distracção. Uma ferramenta para evitares falar sobre aquilo que não sabias exprimir, para que não te sentisses impotente ao tentar. Esperei ansiosa e pacientemente pelo dia em que finalmente viesse o mar e o derrubasse. E, eu voltasse a ter-te livremente.
Num Domingo, saímos de casa logo após o almoço. Estava frio, mas o sol dava o ar da sua graça. Não combinámos trajecto. Andámos em frente, em silêncio. Fomos parar ao jardim botânico. Entrámos e encontrámos várias famílias: os risos das crianças correndo pelo relvado central ou nos baloiços; os pais atrás delas ou estendidos sobre a relva. Procurámos um lugar discreto, de onde ainda assim podíamos observar aquela movimentação salutar e sentir o cheiro da felicidade.
Tu lias o jornal, aparentemente, absorto e eu um livro. Permanecemos por ali. De quando em quando, distraía-me a olhar para as crianças e comentava alguma coisa baixinho para ti. Quando numa das vezes te dirigi um comentário e não te desviaste para a direcção que te apontava, dei por ti a olhar para um rapazinho ruivo de olhos verdes que brincava a poucos metros do nosso banco. Não me ouvias. Reparei melhor no rapazinho e pensei de imediato que poderia ser muito parecido contigo enquanto criança. Não sabia. Não tinhas fotos. Foi então que voltei a olhar de novo para ti, directamente para os teus olhos. Estavam cheios de água. Entrelacei os meus dedos nos teus e para meu espanto abraçaste-me e desataste a soluçar baixinho.
Foi nesse momento que derrubaste o muro. Aquela imagem do rapazinho que poderias ter sido tu, despoletou um retrocesso, e no choro libertaste toda a fúria e a revolta por uma infância destruída e uma vida cheia de mazelas. Quem te deu a vida sem te pedir licença, por pouco tirava-ta sem te pedir licença de novo.
Depois desse dia, tudo se tornou mais fácil. Fizeste um luto quase normal (se é que um luto pode ser normal). Não apenas pela derradeira crise, mas sobretudo pela tua infância falida e as consequências negativas para a vida posterior. Enfim pude reconhecer-te por inteiro e ajudar-te a limpar pequenas aparas acres que ainda tinhas guardadas.
Um dia, sem eu dar por isso apercebi-me de que estavas de volta, mais livre do que nunca. Foi no dia em que me disseste que estavas ansioso por experimentar a ideia de ser Pai. Um capítulo a terminar; outro capítulo a principiar. Em algum momento desse dia, lembro-me de te ter dito: “Bem-vindo, Jack Jigsaw!”




TERESA MARGARIDA PEDROSA CARDOSO nasceu e vive em Portugal. Licenciada em Biologia e doutora em Bioquímica, trabalha como professora universitária. Apesar de possuir um conjunto de textos em poesia e prosa escritos, publica somente trabalhos de caráter científico. Antes da participação na Revista Encontro Literário, apenas em uma ocasião havia publicado um dos seus trabalhos de índole literária. Isto aconteceu no âmbito de uma ação promovida por um agente cultural com o objetivo de aproximar a poesia dos habitantes da sua cidade.


Este conto e o conto 'Becos', um dos três selecionados em concurso literário promovido pela Revista Encontro Literário, compõem o volume especial Dois Contos+  e podem ser baixados no Quintextos,  gratuita e legalmente, nos formatos PDF e EPUB.







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