Por Helena Frenzel
Há tempos eu vinha cansado, ela sabia. Era final de sábado e voltávamos das compras do mês. Ajudando a guardar os artigos, lembrei daquilo que Zé Oliveira, bom amigo, me propôs: “Se você quiser, aproe aqui que eu não cobro, eu tenho sempre lugar pra ficar por lá”.
Ele morava na cidade em que eu trabalhava e eu, na capital em que ele vinha trabalhar. Eu ía e vinha todos os dias; ele, só quando em vez. De fato, minha casa era a estrada e a essa conclusão só cheguei muito depois.
Cem quilômetros por dia, ida e volta, eu já nem sabia como sabia a comida de casa, acho que ela também não. Eu chegava à noite, acabado, e ela já estava sob os lençóis; eu tomava banho e ia deitar.
De manhã cedo, às cinco, tudo de novo: acorda e levanta, se lava, faz o café, a barba, se lava, come e lava a louça, se lava, se veste e pega a pasta, espera em frente ao portão. E ela dormia um pouco mais porque entrava só às onze.
Um dia sou eu, no outro é o Dico, outro amigo muito bom. Ontem foi ele quem dirigiu. Moramos no mesmo condomínio, trabalhamos na mesma firma e esse emprego foi ele quem me arrumou. Antes eu só havia feito bicos, agora a coisa ia bem melhor.
“Com esses frascos aí, muito cuidado! Lá no banheiro com o material fotográfico, cada qual em seu lugar, ouviu?”. Voltei do transe a tempo de ouvir o final da instrução; sempre fui distraído e arrumar compras é muito chato mas ajudo para não ouví-la reclamar.
Primeiro compramos a casa e os móveis, o carro veio depois. Estamos pagando tudo em suadas prestações. Ela também trabalha e a repartição pôs-lhe um carro à roda, ela assessora políticos da capital — vaga que Oliveira arrumou, para nossa sorte, pois que assessores ganham muito bem e ele conhece muita gente ‘forte’. Oliveira é político de nascimento e leva muito bem a vida ensinado aos outros o seu dom.
Uma vez no banheiro, larguei os frascos, tomei uma ducha. Estávamos já na cama quando algo me surpreendeu: “Como foi seu dia?”, há tempos ela não me perguntava nada. “Bom, e o seu?”, respondi com sincero interesse. “Normal” — e essa resposta me deixou sem saber como continuar. Justo neste momento entrou o Manuel Pelota e eu me distraí falando com ele, combinando o futebol de domingo. “Está bom então, teclamos mais tarde, beijos”, ela disse. “Beijos”, respondi.
Bem mais tarde vi quando ela saiu da rede, pôs o celular na cabeceira sem desligá-lo, virou para o lado e dormiu. Eu fiquei mais um pouco, teclando com o Dico, que já estava para sair do espaço quando me viu e me chamou. Depois de ter checado meu e-mail, pus o meu também ao lado, ativo, desliguei a luz e apaguei.
Na segunda-feira tive um dia de trabalho cheio, cheguei em casa louco para descansar. Naquela noite, ao tomar banho, esfreguei o corpo com xampu e lavei o cabelo com sabonete. Lembrei da proposta de Oliveira: Sim, amanhã eu levaria uma mala porque cem quilômetros por dia, ida e volta, não era mole não!
De banho tomado, pus o pijama e fiz menção de ir deitar-me. E ela já, sob os lençóis. Então lembrei-me de algo. Voltei ao banheiro e ao automático: escovar os dentes, bochechar.
Por fim tomei do frasco com veneno em vez do frasco com loção bucal. Se troquei ou se trocaram, disso eu nunca vou saber, a polícia tinha por dado que fora caso de distração.
E no meu funeral, vi tudo muito claro: “Cada qual em seu lugar”— Oliveira e Dico, ela no meio, eu no caixão.
Distraído, eu jamais havia notado que as vestes bem moldavam-lhe as formas e como o preto lhe caía bem.
HELENA FRENZEL é maranhense, autora-editora de vários Ebooks gratuitos, entre eles, as coletâneas de contos “Perfis Interessantes”, “Trinta Contos de Euros e Três de Natal” e “Outros Quinze Contos”. Mantém os sites “15 Contos+”, “Bluemaedel”, “Sem Vergonha de Contar” e uma escrivaninha no site Recanto das Letras.
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