Por Raphael Reis
O sonho, gerador de desejos para uns e momento de contato com a pátria espiritual para outros, levou-me a um encontro literário, diferente, confesso. O leitor poderá confirmar sua validade.
Era um local que exalava intelectualidade, humor, crítica ou simples divertimento — não podia ser diferente, na medida em que ali se encontravam vários escritores conhecidos. Era um local que parecia uma espécie de café cultural.
No balcão, uma bela moça me atendeu. Chamava-se, se não me engano Amanda, detentora do mais belo sorriso que já vi. Pedi um café espresso, olhei para as mesas — experiência única.
Pode me invejar, amigo leitor. Lá estavam vários escritores. A mesa que mais me chamou atenção foi a composta por Miguel de Cervantes Saavedra, Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Também, não poderia ser diferente.
Peguei meu café e fui em direção à mesa. A mesa em que estavam era de ferro; desenhado, em sua superfície, os quadrados (preto e branco) do jogo de xadrez. Todos os três estavam acompanhados de uma xícara de café e, entre um gole e outro, conversavam. De nada vai acrescentar em nossa narração, mas tenho que dizer: foi curioso notar que Machado insistia em usar, mesmo fora de moda, sua espessa barba. Mas sem problemas, continuava a ser um gênio!
Não preciso dizer que de um encontro reunindo três grandes escritores desse porte, no mínimo, sairia algo agradável e produtivo. Não quis incomodá-los com minha presença. Sentei-me em uma mesa próxima e fiquei a observá-los, na tentativa de escutá-los.
A obra da vez era El Ingenioso Caballero Don Quijote de la Mancha. Cervantes passou detalhes aos amigos sobre a elaboração da obra que levou anos de trabalho e dedicação. Disse que depois de algumas leituras, os capítulos de que mais gostava eram os que narravam as habilidades de Sancho Pança quando finalmente conseguiu governar sua tão sonhada ínsula. Comentou sobre a repercussão do primeiro volume, sobre a edição apócrifa e a publicação do segundo volume. Ficara extremamente contente por ter inaugurado algo novo e que influenciou vários escritores. No entanto, tenho para mim que Borges conhecia mais a obra do que o próprio Cervantes. Fez comentários das erratas, comentários sobre os comentários do próprio Cervantes, das dezenas de traduções que leu, dos mínimos detalhes históricos e linguísticos dos livros que Cervantes leu para compor sua narração, detalhou Avellaneda — coisas de que o próprio Cervantes já não se lembrava mais e talvez até desconhecia.
Machado de Assis, aproveitando a perplexidade de Miguel de Cervantes ao escutar o discurso circular hipnotizante de Borges e, lembrando-se de Pierre Menard, completou: “sinceramente, tenho uma dúvida: não sei se Quixote gerou Borges, ou se foi este que foi seu autor”.
Todos os três sorriram. Tomaram mais um gole de café — pó produzido nas verdejantes fazendas mineiras — e passaram à loucura.
Ao aproveitar a descontração, Machado de Assis brincou com Cervantes que a cura de Dom Quixote estaria na Casa Verde e que ele seria um hóspede dos mais importantes e inusitados para o estudo do Dr. Simão Bacamarte, pois nele estaria, numa mesma pessoa, a causa e o antídoto da loucura.
Cervantes disse que seria improvável alguém curar Dom Quixote a não ser ele próprio, mas que certamente o Dr. Bacamarte encontraria em Alonso Quixano uma companhia e, assim, não ficaria na Casa Verde sozinho, no final das contas.
Machado de Assis concordou com um leve balançar de cabeça. Tomaram o último gole de café.
Enquanto Cervantes e Machado conversavam, Borges ficou imerso em seus pensamentos. Reparei que desde o começo do bate-papo entre Machado e Cervantes, Borges pegou uma folha amassada do bolso e começou a escrever com sua caneta prata de fabricação inglesa, este último objeto presente da amiga Silvina Carrizo. Como se estivesse sozinho na mesa, fez várias anotações com uma rapidez que me impressionou.
Cervantes e Machado, reparando no silêncio de Borges e seu movimento de escrita, perguntaram o que estava escrevendo.
Borges, após alguns minutos de silêncio, guardou a caneta, passou a mão pela folha, desamassando-a, e mostrou aos amigos.
Da minha cadeira fiquei extremamente curioso para ler — já imaginou, amigo leitor, você ser o primeiro a ler um escrito inédito de Borges e principalmente feito naquela situação?
Tentei de todas as formas ler o que Borges tinha escrito. Contudo, só pude ler o último trecho, a letra também não ajudava muito. Recordo-me que dizia algo parecido como: “[…] y por fin, todos lo sintieron que estaban siendo vistos y analizados. Entendieron, entonces, que aún formaban parte del universo”.
RAPHAEL REIS é mestrando em Educação (UFJF), especialista em Políticas Públicas (UFJF) e graduado em História (UFJF). É autor do livro “Contos que Machado de Assis e Jorge Luis Borges Elogiaram”, do qual este conto faz parte.
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Que encontro espetacular, hein, Raphael? Deveras antológico, ainda bem que você acompanhou "esse papo 10" para nos contar tudinho, neste conto tão bem escrito. Um passeio pelo melhor da Literatura, assim gratuitamente, é um grande presente. O fecho foi uma tacada de mestre. Muito criativo, imaginação poderosa! Ah, e eu queria muito também estar na mesa do lado, como não?
ResponderExcluirParabéns, um abraço da Marina Alves.
Parabéns
Que prazer ler conto tão bem elaborado e ainda por cima reunindo quatro maravilhosos homens de letras, um deles, o próprio autor do conto. Bravo! Abraço, Meriam
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