Por Mário Jacoud
— Boa noite, doutor.
Carlos, o motorista, abriu a porta traseira do carro e Doutor Jorge entrou. Nem respondeu ao cumprimento. "O que essa gente pensa? Que pobre não precisa de boa noite? Que, do lado de cá, todos os dias são iguais, ou seja: sempre péssimos? Esse aí deve achar que nem adianta desejar boa noite e, além disso, nem me reconheceu. Eu o conheço: tem um cargo na diretoria da empresa só porque é genro do presidente da companhia. Faz um ano, levei ao aeroporto, atrasado, pediu pressa, corri o que pude para chegar a tempo, disse que ia me recomendar na firma. Nada, nem se lembra de mim."
— Para minha residência.
"Outra vez? Uma falta do meu motorista e a empresa manda o mesmo chato do ano passado... Será que não tem outro substituto na firma? Lembro que pedi pressa, correu feito louco até o aeroporto, reclamei com o responsável, mas, pelo visto, não tomou conhecimento. Exigirei providências."
— Sim, senhor.
"Eu sei onde ele mora. Peguei o endereço antes de sair. Que casa! O sogro deu como presente de casamento, mas, pelo que se comenta, vai ter que mudar logo. Dizem que as coisas não andam bem com a mulher... Detesto quando toca o celular do passageiro, por mais que eu não queira acabo prestando atenção na conversa, acabo distraindo."
— Alô... sim... chegarei logo... calma... pense mais um pouco...
"O que ela quer? Trabalho muito, faço tudo que posso, dou toda atenção possível. Jura que me ama, mas diz que assim não dá para continuar. Como pode? Será que ama mesmo? De minha parte o amor ainda é o mesmo. Sei que falam que casei pelo dinheiro, pelo emprego. Mentira! Por amor, foi por amor! Maldito retrovisor, o motorista parece que não tira os olhos de mim, tentando adivinhar... "
— Com licença, doutor...
"Pronto! Lá vou eu tentando conversar de novo, mas não posso evitar, sou assim, que posso fazer?"
— Problemas em casa, com a patroa, não?
"Acho que fui longe demais. Não respondeu, vá lá."
— Sabe, doutor, em casa também é assim. Para ela nada está bom, parece que sempre falta alguma coisa. E isso me incomoda. Ela já quis separar, eu também. Pensei bem e fiz umas continhas... Assim, ó: todos temos qualidades e defeitos, e as qualidades devem superar os defeitos, nem que seja um pouquinho, cinquenta e um a quarenta e nove por cento. Se ela for boa para mim durante metade do dia, tudo bem. Durmo oito horas, o trabalho me ocupa por mais dez horas, sobram seis horas. Então? Por mais que ela queira brigar, jamais vai estragar metade do meu dia.
"Será que entendeu? Esses desse tipo... parece que quanto mais estudam mais burros ficam."
— Em nome do amor, doutor, faço o impossível para compreendê-la por seis horas, só seis horas.
— É mesmo?
"Só me faltava essa, filosofia de motorista. Após um dia cheio, tantas reuniões infrutíferas, a caminho de mais uma briga em casa, quem sabe até separação... O sujeito tem um pensamento simples demais... vinte e quatro horas, ocupado dezoito, é só suportar mais seis... Bem, às vezes, a solução do problema está no mais simples."
— Como é o seu nome?
"Carlos, como eu podia lembrar? Esses caras de uniforme parecem todos iguais. Quero ver como se sai dessa, agora."
— Pois é, Carlos, digamos que, nessas seis horas que você passa com sua mulher, ela atazana tanto, mas tanto, que as seis passam a contar por doze, treze horas, ou uma eternidade? Como você faz?
”Peguei... "
— Doutor, vou falar o que penso, se não concordar me desculpe. Acho que as mulheres são assim como seres especiais, bem diferentes de nós, humanos. Agem e pensam de outra maneira. Quer um exemplo? Se a sua mulher telefonar, durante seu trabalho e não falar nada importante, o senhor vai ficar irritado, vai dizer para ela não fazer mais isso, que está ocupado, etc. Ora, ela deixou seus afazeres para que? Para irritá-lo? Não, doutor, ela quer ouvir sua voz, fazendo isso ela está dizendo que o ama, e sua voz, mesmo não dizendo nada, tem que mostrar que a ama também. Simples e fácil. O telefonema que o senhor recebeu agora há pouco é um exemplo. Se fosse o senhor a ligar e dissesse que estava a caminho de casa e com saudade, com certeza não teria briga por hoje, não acha? E olha que o senhor tem um celular...
— Simples e fácil, ora.
"Motorista, matemático, psicólogo, filósofo, metido."
— Você pensa que tem solução para todos os problemas de relacionamento entre casais? Um motorista! Responda, então, a pergunta que fiz. Se mesmo com o tal telefonema, ela estiver esperando para mais uma batalha verbal, o que você faz?
— O doutor usa paletó para que?
"Deixe ele pensar um pouco, acha que não entendo nada, ele que está complicando, não eu."
— Eu uso também, sou obrigado. Tenho cinco bolsos no meu, acredito que o senhor tenha no seu, não? A diferença entre nós é o que carregamos nos bolsos. Veja nos seus, celular, cigarros, isqueiro, carteira e não sei mais o que. Nada que seja importante para ela. Nos meus tenho um bombom e uma rosa. Todos os dias pego uma flor do jardim da empresa, conto com o doutor para guardar segredo, senão adeus emprego. Ao primeiro sinal de mau humor, estendo a rosa, como um mágico. Se não for suficiente, tenho o bombom, que guardo para uma segunda tentativa, ou para o dia seguinte. Se precisar da terceira tentativa, tenho minha boca, doutor. Não é pela boca que a gente mostra o que tem no peito, na alma? Faço isso sem palavra alguma. Enquanto ela ainda tenta brigar, fico mágico novamente e falo tudo o que quero com um beijo, inesperado, apaixonado. Tudo fácil, simples e barato.
— Pare na próxima esquina, vou seguir caminhando. Como é seu nome mesmo?
— Pode me chamar de motorista, mesmo, doutor.
Carlos estacionou e abriu a porta para Doutor Jorge. Enquanto manobrava o veículo viu o homem falando ao celular e caminhar em direção à floricultura. Carlos, o motorista: solteiro convicto, matemático, psicólogo, filósofo, mágico, metido e mentiroso. Simples e fácil.
MÁRIO JACOUD é economista, nasceu em Guaraçaí – SP, em 1952. Atualmente vive na cidade de São Paulo.
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Que alegria ver este belo projeto tomar forma, se tornar real. Encontrar pessoas idealistas que ousam sonhar os próprios sonhos até vê-los realizados é o que ainda nos motiva nesse universo maravilhoso da Cultura e da Literatura. Os contos estão fantásticos, escolhas realmente muito felizes, nesta mistura de talentos e competência dos contistas aqui elencados. O prefácio de José Cláudio, escritor que aprendi a admirar no Recanto das Letras, está impecável, como sempre. Realmente um grande prazer fazer parte desta obra fascinante. Que seja divulgada com todos os méritos! Parabéns a todos, em especial à Helena Frenzel por este brilhante trabalho. Abraços da Marina Alves.
ResponderExcluirEm especial, depois de ler o seu conto, Mário, fiquei aqui pensando na versatilidade que você deu a este motorista, personagem construído de forma brilhante (a maneira como você o conduziu foi fantástica). Desfecho surpreendente! Parabéns, abraço da Marina Alves.
ResponderExcluirQue texto lindo. Mais pessoas simples e sábias como Carlos nas nossas vidas, por favor!
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