Por Marcos Fábio Belo Matos
Todos os domingos eu ia religiosamente à igreja. Mas não ia pra orar nem pra louvar ao Senhor nem nada dessas coisas de palavra de Deus, não. Eu ia era pra ver ela tocar piano. Ela era uma visão do céu, parecida com aquelas imagens de anjo que eu via no meu livro de catecismo, quando era guri. E a música que ela tirava do piano era maravilhosa.
Eu chegava cedo na igreja e me sentava bem na frente de onde o piano ficava, esperando a hora dela chegar. Ela entrava, normalmente, uma meia hora antes, para passar as músicas. Trazia um caderninho, que um dia eu vi cheio de uns sinais estranhos, deviam ser as notas musicais que ela tocava. Sentava no banquinho, abria o piano, botava o caderninho numa espécie de prateleirinha, onde ele ficava penduradinho e dando exatamente para ela ver os sinais e tocar por eles. Tocava sem acompanhamento. Era uma igreja tradicional, muito silenciosa. Nada daqueles cultos cheios de guitarra, bateria, baixo que mais parecem um show de rock, com um pessoal tocando e cantando histericamente. O pastor tocava violino, de vez em quando, fazendo dueto com ela no piano — uma maravilha!
Verde, vermelho, amarelo, azul, lilás...Ela variava muito a cor do vestido. Mas sempre usava vestido, nunca calça nem saia nem outro tipo de roupa. Sempre vestido. Não devia ser norma da igreja, não, porque via muitas meninas lá de blusinha, jeans justinho, até de decote. Talvez fosse pelo fato dela tocar o piano, e o piano impor uma certa postura mais clássica, sei lá. Só sei que eu adorava quando aqueles vestidos entravam na nave da igreja, sentavam e dedilhavam uma música celestial, invadindo meus ouvidos e tomando conta do meu cérebro inteiro.
Na primeira vez, entrei na igreja por acaso. Tava em casa sem nada pra fazer, aí fui dar um passeio. Quando passava na frente do prédio, ouvi a música. Fiquei curioso, era uma música tão suave, tão diferente...Entrei e dei com ela passando os hinos, quase ninguém ainda tinha chegado. Sentei na frente dela e fiquei de olhar fixo nos dedos que deslizavam pelo piano. Nem piscava. Acho que ela percebeu, pois me olhou depois de ter passado as músicas e fez um cumprimento muito sutil, acenando com a cabeça e dando um risinho mínimo, mas eu percebi.
Fui muitas vezes à igreja, sempre na esperança de que ela nunca faltasse. E ela nunca faltou enquanto eu morei na cidade, vários anos. Mas um dia eu voltei lá pra rever uns parentes, fui ao culto e não encontrei mais ela. Não quis perguntar nada, porque não conhecia ninguém na igreja, frequentei todos aqueles anos como um desconhecido e ninguém se importou de saber nem o meu nome. Melhor assim. O piano ainda estava lá, mas só de decoração, nenhum som. Agora tem um cara tocando violão, ainda bem que não é uma daquelas bandas que ficam se esgoelando pra ver se Jesus ouve lá do céu. O pastor também mudou, agora é um mais novinho. Assisti só a metade do culto e fui embora antes de tirarem a oferta.
MARCOS FÁBIO BELO MATOS é maranhense de Bacabal, membro da Academia Bacabalense de Letras. É jornalista e professor do Curso de Jornalismo da UFMA-Imperatriz. É graduado em Comunicação Social (Jornalismo), licenciado em Língua Portuguesa, especialista em Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura e doutor em Linguística e Língua Portuguesa. É autor de “O Homem que derreteu e outros contos” (1997), “Cotidiano Cinza” (2005) e “Crônicas de Menino” (2006), além de outros livros na área científica. Mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras.
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Parabens Marcos! vc é demais!
ResponderExcluirÓtimo conto, professor. Excelente trabalho!
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