Por Josadarck
“Esta história é
verídica, mas nada indica que realmente tenha acontecido. A despeito do
paradoxo, a história assim se inicia:
* * *
Seus pequenos
olhos corriam sem compromisso à procura de novidades. Tarefa nada difícil.
Cores, formas, sons, sabores, sensações. Em cada tentativa uma nova descoberta.
O mundo não se limitava apenas a seus contornos lógicos e leis ilógicas, mas
expandia-se sem controle em todas as direções. Não em busca de respostas, mas
de perguntas. Tão melhores as questões quanto mais irreais. Nem mesmo os sonhos
possuíam patente mais alta no mundo da fantasia do que a sua própria realidade.
Pelo contrário, se abraçavam e se confundiam, dando mais graça e menos razão
para um mundo que já não tinha classificação. Acordar e dormir não eram
transições, mas apenas ações casuais como quaisquer outras, como sentir a água
descendo pela garganta seca. Não existia, de fato, uma realidade. Não para
alguém que jamais tivesse sido reprimido pela forte censura do medo. Não para
alguém que jamais tivesse tido um pesadelo. Não para ele.
A temperatura do
sol que aquecia suas costas nuas acentuou-se discretamente, e isso já foi uma
sensação completamente nova. Se em sua modesta gama de aprendizado constasse o
contrato corporal de reconhecimento, se levantaria para bater palmas ao
astro-rei pela incrível atuação. Olhou para aquela bela e inseparável mulher
sentada perto de si e ficou confuso. Ela não mudara sequer de expressão, e
parecia não notar o belo espetáculo que acabava de acontecer. E a estranheza
que isso lhe causava gerou outra inédita sensação. E tudo continuava provocando-o. A brisa mudando de vigor e
direção, a grama coçando-lhe as coxas, a formiga escalando seu braço miúdo. Não
negava nem ignorava nada disso. Aceitava cada pequeno acontecimento.
Recuperou a
atenção que o sol lhe roubara e virou-se. Seus dedos ainda se encontravam
mergulhados entre algumas folhas baixas. Acariciava cada uma e permitia que lhe
lambessem a mão em forma de agradecimento. Olhava tudo com atenção, e tentava
entender as semelhanças e diferenças de textura e matizes. Gostava muito do que
estava ao seu alcance, mas o que mais lhe causava furor eram as rosas, que não
estavam. Apesar de já ter ido incontáveis vezes ao quintal, jamais as tinha
visto tão de perto. Eram magníficas. Dançavam no ritmo do vento e pareciam
esforçar-se para lhe impressionar mais, quanto maior seu deslumbre.
Todas se pintavam
de vermelho, mas possuíam diferentes tons. E em cada tom, um despropósito
diferente. Seu cheiro invadia-lhe as narinas, sem permitir que nenhum outro
odor se acomodasse entre o sentido impuro e o prazer pudico. Seu olhar curioso
parecia ter se transformado em uma admiração profunda. Uma distância maior do
que a de seus braços os separava. Desejava-as e não podia mais ficar apenas
contemplando-as. Precisava tocá-las.
Estava sentado,
da mesma maneira que tinha sido deixado ali, e dessa forma não seria capaz de
alcançá-las. Começou a se mexer sem coordenação, tentando descobrir quais
seriam o movimento e o impulso certos a tomar para aproximar-se da razão de seu
deslumbre. Seu sentido de urgência e sua animação precipitada fizeram-no cair de costas na grama.
Prostrou-se novamente sentado, ajeitou-se e decidiu persistir em seu intento.
Ajeitando os
joelhos, apoiou com firmeza as mãos na grama, formando uma base firme. Não
sabia se era exatamente assim que deveria fazer, mas já se encontrava mais
próximo das rosas agora, porém não tinha mais as mãos para chegar a elas. Ainda
com as mãos no chão, começou a buscar o apoio das solas de seus pés. Primeiro o
pé direito, depois o esquerdo. Fazia um esforço jamais experimentado antes. Um
sacrifício honroso pela razão nobre de reparar a distância de um amor ainda não
vivido.
Primeiro tirou a
mão direita do chão, quase caindo para o mesmo lado. Assustou-se e colocou a
mão de volta. Tentou novamente, dessa vez fazendo um peso para o lado
contrário, e logo já tinha tirado a mão do chão. Quantas sensações! A força
invisível que o empurrava, a força que ele mesmo tinha de fazer para manter-se
equilibrado, a ânsia temerária do desejo não saciado. Enquanto continuava sua
busca, sorria sobre todas essas outras descobertas.
Tirou a mão
esquerda. Resolveu ter mais cautela, prevenido pelos riscos da aventura que
havia enfrentado com a outra mão. Tão logo começou a tirá-la do chão, sentiu
que a força o empurrava, dessa vez, para frente. Foi se equilibrando
vagarosamente, na mesma velocidade em que tirava a mão do chão. Quando deu por
si, encontrava-se de pé.
Mantinha-se ali,
afastado da grama, apenas com a força das próprias pernas, experimentando uma
enganosa sensação de poder e independência. Sentia-se tão dono de si que, por
um momento, esqueceu-se de seu verdadeiro propósito. Assim que lhe ocorreu o
verdadeiro motivo de sua nova conquista, sentiu-se enganado pelo próprio
egoísmo.
Voltou-se para as
rosas e espantou-se. Mal podia acreditar o quão próximas estavam. Tudo se
tornara mais nítido agora. Cores, cheiros e formas. Seu coração batia mais
rápido, e seus olhos mal piscavam. Esticou o braço em busca do paraíso
tangível, e tocou-as. Um formigamento percorreu seu braço, costas, pernas e
nuca. Sentia pela primeira vez um calafrio. Entendeu que nesse instante
singular uniam-se sensações e pensamentos. As rosas continuavam a dançar entre
seus dedos, seus perfumes a reinventar seu olfato e suas cores a confundir-lhe
as ideias. E então compreendeu que as amava.
A mulher, que até
então se encontrava irredutível em sua cadeira de balanço, levantou-se em um
impulso. Contente pela cena que presenciava começou a gritar:
— Venham aqui
fora, venham ver! Ele ficou de pé! Conseguiu ficar de pé sozinho! Venham
correndo ver!
O menino, que não
se distraiu de sua recompensa nem mesmo com os gritos entusiasmados, notou
então um brilho intenso. Esticou seus pés para tentar enxergar a fonte da
refulgência, quase caindo para trás.
O que via ia
muito além de tudo o que já tinha visto até então. Completamente atônito,
deixou-se dominar pela esplêndida visão. Uma rosa dourada. Prostrava-se, acima
das outras, exibida, extravagante e soberana. Ganhava mais e mais corpo, quanto
mais era apreciada. Seu poder era inebriante, pois ela ardia como o sol.
Esqueceu-se das rosas vermelhas, como se nunca antes as tivesse visto, pois
elas não importavam mais. A rosa dourada era inigualável. Era a única
realidade, e tudo à sua volta era ilusão, inclusive a existência daquele, por
ela maravilhado. Percebeu que acabara de encontrar a mais linda de todas as
rosas.
Virou-se para
aquela mulher que há pouco festejava como efeito de comparação, pois era a
única a quem ainda amava acima da rosa, e surpreendeu-se. Ela também olhava
para a flor. Porém, seu rosto era de pavor, de completo assombro. Um terror
devastador invadiu seu corpo, e o calafrio que sentiu desta vez não foi
agradável como o anterior. Perdeu a força nas pernas, quase caindo. Sentiu,
pela primeira vez, o medo.
Voltou-se para a
flor novamente. Aquela rosa, que antes ostentava um belo vestido dourado
cintilante, agora ia se tornando marrom, imunda e opaca. Roubava todo o brilho
e alegria à sua volta, como alimento para seu crescimento desgovernado.
Sentiu-se confuso. Não entendia por que lhe fora negado o direito de apreciar
mais e para sempre a beleza daquilo que amara. Seu medo crescia mais do que a
própria rosa.
Tentou, então,
utilizar seu único instrumento de entendimento para encontrar alguma razão para
aquilo que não tinha explicação e esticou a mão em sua direção. Seus dedos,
buscando o toque esclarecedor, cobriam parte da rosa de sua vista, pois se
entrepunham entre seus olhos e a imagem da flor. O momento do contato, para
ele, parecia impossível, e de fato o era. Sua singela noção de profundidade não
lhe permitia notar que a flor não estava a centímetros, mas a dezenas de
quilômetros do instante do toque. Ele não a alcançaria, mas ela veio em sua
direção.
Seus dedos
começaram a desaparecer no ar bem frente a seus olhos, a poucos palmos de seu
nariz, como se nunca antes tivessem existido. Depois dos dedos, a mão. O braço
e todo o resto de seu corpo foram consumidos pela luz mortal. A mulher também
desapareceu em pleno ar, assim como a casa e tudo o que havia atrás dela. Nada
disso ele pode notar, pois a velocidade da devastação impiedosa foi
extremamente menor do que o tempo necessário para que o cérebro percebesse a dor.
A fantasia acabara. Só havia a realidade.
Não chegou a
entender que aquela flor letal não distinguia-se de suas primas apenas pela
cor, e que essa era a menor das diferenças, pois ela não fora gerada pela
sabedoria imensurável da natureza, mas pela estupidez mórbida dos homens.
A arma de
destruição em massa, que converteu carne em pó, havia condenado até mesmo
aquele que não sabia o que é ser inocente.
E o menino, que
outrora as amou cegamente, morreu odiando as rosas.”
JOSADARCK é
engenheiro por formação, músico por admiração e escritor por aspiração. Publica
suas frases, poesias e contos através do site Recanto das Letras e mídia
social. Pretende transformar através das palavras, palavras que são
transformadas através de ações.
Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Caro(a) Leitor(a), lembramos-lhe que comentários são responsabilidade do(a) respectivo(a) comentarista e informamos que os mesmos serão respondidos no local de postagem. Adotamos esta política para melhor gerenciar informações. Grata pela compreensão, muito grata por seu comentário. Volte sempre, saudações!